A mulher que fez a poesia persa sangrar, mudou um país e morreu aos 32

A mulher que fez a poesia persa sangrar, mudou um país e morreu aos 32

No inverno, a cidade engole ruídos e devolve presságios. Pneus riscam o asfalto molhado; o vidro estilhaça no muro; a sirene distante se desfaz no frio; o silêncio, depois, pesa mais que a noite. Em Teerã, fevereiro de 1967 tem a densidade de uma fotografia revelada às pressas. Ali, uma mulher que escrevia com o corpo, e por isso foi punida, deixa na rua um rastro de neve e rumor. Chamava-se Forugh Farrokhzad. Antes que a notícia alcançasse as bancas, seus poemas já sabiam sobreviver sem ela.

13 de fevereiro de 1967. Forugh Farrokhzad, 32 anos, morre em Teerã num acidente de carro. Alguns registros fixam a data em 14. A versão oficial afirma que ela desviou de um ônibus escolar; o jipe perdeu o controle e atingiu um muro. Houve, depois, suspeitas e versões laterais, sem prova conclusiva. O que permanece, entre papéis e memórias, é o essencial: uma obra em expansão interrompida de modo abrupto.

Numa casa de classe média disciplinada, Forugh aprende cedo a gramática do limite. Cresce entre paredes de tijolo e de norma. Aos dezesseis, casa-se com Parviz Shapour. Nasce um filho. A separação vem logo e a guarda fica com o pai. Essa incisão privada atravessa seus poemas como cicatriz nítida. Em 1955 surge “Asīr” (“A Cativa”); em 1956, “Dīvār” (“O Muro”); em 1958, “ʿEṣyān” (“A Rebelião”); em 1964, “Tawallod-ī dīgar” (“Outro Nascimento”). O verso ganha fôlego, a sintaxe se despoja, a primeira pessoa encontra temperatura. A partir daí, a poesia de Forugh troca moral por consciência e transforma o interdito em forma.

Os primeiros livros soam como câmaras de pressão. Em “Asīr”, a prisão íntima se enuncia sem lamento; “Dīvār” cartografa o interdito cotidiano, metro a metro; “ʿEṣyān” abre a janela e transforma a fratura em método. O cenário é Teerã de meados dos anos 1950, vitrines de modernização acesas enquanto a polícia dos costumes vigia o tom da voz feminina; nas redações, o cheiro de tinta e linotipo; nas salas, rádio baixo e cortinas pesadas. Entre o she’r-e no inaugurado por Nima Yushij e a persistência do velho ghazal, a linguagem procura um corpo possível. Em “Tawallod-ī dīgar”, a voz não apenas amadurece, cria temperatura: o corpo deixa de ser assunto e passa a instrumento de conhecimento; a sintaxe desarma o ornamento; o verso aprende a respirar como rua. A resposta vem em editoriais e cochichos de família, acusações de imoralidade que tentam reduzir forma a escândalo. Lido com calma, esse percurso diz o que significava escrever ali e então: inventar um vocabulário público para a experiência privada e, com ele, deslocar a moral para a consciência, o interdito para a forma.

O cinema entrou como ferramenta de prospecção ética. Em 1962, no estúdio de Ebrahim Golestan, Forugh pega a câmera e segue até o leprosário de Bababaghi, nos arredores de Tabriz. “Khāneh sīāh ast” (“A Casa é Negra”) condensa vinte e dois minutos em que a luz pousa sobre rostos feridos; ouve-se o ranger do giz nas aulas de caligrafia; leituras sagradas se cruzam com a respiração dos corredores; a narração, sem ênfase, conduz o olhar. A montagem recusa piedade fácil e alterna ferida e forma, ruína e tentativa. Em 1963, o filme recebe prêmio em Oberhausen; décadas depois, retorna restaurado em Venice Classics, em 2019. Entre uma data e outra, o país muda de pele e o cinema iraniano encontra um léxico de sobriedade, elipse e observação que aqui já estava desenhado. No meio da modernização oficial, quando vitrines e slogans prometiam futuro, a câmera de Forugh insiste no que não vira vitrine: a escola dentro do leprosário, a mão que costura, o rosto que aprende a escrever o próprio nome. Hoje, “Khāneh sīāh ast” é citado como gesto inaugural do novo cinema iraniano. Marginal à época; alicerce depois; não por destino, mas por método.

Durante as filmagens, Forugh encontra um menino no pátio do leprosário, caderno gasto nas mãos. Leva-o para a casa da mãe e assume sua maternidade num Teerã que vendia modernização nas vitrines enquanto mantinha o estigma atrás das cortinas. Chamava-se Hossein. O gesto não é periférico; é o centro ético do filme transposto para a vida, recusa do abandono em uma época que preferia esconder a doença e o diferente. A partir daí, o cuidado vira método: o olhar preserva a pessoa antes da ferida, o verbo devolve forma ao que a lepra desfigurava e a cidade preferia não ver. Em “Tawallod-ī dīgar”, essa ética muda de estado e se converte em linguagem. O corpo deixa de ser assunto e torna-se instrumento de conhecimento; as imagens atravessam o doméstico para iluminar o público. Em “Delam barāye bāgh mīsūzad” (“Lamento o Jardim”), casa, plantas e água parada compõem um diagnóstico sem ênfase. “Ninguém quer crer que o jardim está morrendo”, verso curto que mede a febre do país e, ao mesmo tempo, a temperatura de uma casa que recomeça com um filho escolhido.

O último trabalho editorial que deixou preparado reuniu os poemas que formariam “Īmān bīāvarīm be āḡāz-e faṣl-e sard” (“Vamos Acreditar no Começo da Estação Fria”), publicado postumamente em 1974, sete anos depois. Lido hoje, o volume é ao mesmo tempo testamento e começo. A urgência não se amplia em volume, contrai-se em economia: versos curtos, imagens nítidas, ar de sala arejada no inverno. A voz parece contar os dias e evita o tom de despedida; expõe-se e se disciplina, como quem protege uma chama no vento. O que se define ali é uma modernidade própria do persa, em conversa com vizinhos estrangeiros, ancorada na matéria local da língua. A novidade não está no assunto, mas no andamento: cortes e retomadas que fazem a metáfora tocar o concreto e voltar com pó de rua, prova mínima do real.

Forugh Farrokhzad
Morreu aos 32; mudou o Irã: Forugh Farrokhzad, a faísca que incendiou a língua

A biografia cedo se enredou em versões. A parceria com Ebrahim Golestan alimentou rumores por décadas; entrevistas tardias sopraram mais fumaça. O que interessa, porém, está no plano de trabalho: roteiros reescritos de madrugada, bobinas de 16 mm espalhadas no piso do estúdio, chá esfriando ao lado da moviola, discussões sobre corte e respiração do plano. Compartilharam projetos, filmes, leituras. A fricção entre duas inteligências moveu uma obra, não uma anedota. Para entendê-los, convém colocá-los no corredor que vai do she’r-e no de Nima Yushij à modernidade urbana dos anos 1960. É ali que Forugh desloca o eixo, recentrando a experiência feminina sem convertê-la em bandeira; o que chega ao poema não é slogan, é forma em estado de atenção. A originalidade sobrevive ao rumor porque está na página e na montagem, não nas manchetes.

A comparação com Sylvia Plath aparece por reflexo e economiza pensamento; ilumina pouco a paisagem que Forugh atravessou. Plath escreveu no eixo Estados Unidos e Inglaterra, num ambiente crítico que já discutia o confessionalismo; Forugh ergueu a própria primeira pessoa em Teerã, anos 1950 e 1960, entre avenidas recém-abertas e salas onde a moral vigiava o volume da voz feminina. Enquanto o inglês de Plath se volta para uma combustão íntima, o persa de Forugh precisa negociar com a rua, com a família, com a imprensa que transforma rumor em sentença. A linhagem é outra: do verso livre persa pós-Nima até Ahmad Shamlou e Sohrab Sepehri, ela instala um eu que pisa o quintal e a calçada, que pensa o erotismo como forma de conhecimento e faz da perda um método de nitidez. A técnica não aparece como exibição, mas como temperatura controlada: frases que alongam o fôlego e cortes que devolvem o real sem piedade e sem sentimentalismo. O efeito, lido no contexto, não é de parentesco com um mito estrangeiro; é de invenção local. Se há afinidade, está no risco; a matéria, porém, é outra. Forugh escreve como quem mede o clima de um país e, ao medi-lo, abre passagem de ar.

Depois de 1979, veio o apagamento oficial. Por mais de uma década, seus livros sumiram de vitrines e bibliotecas; restaram cadernos datilografados, cópias de xerox com toner esfarelando nos dedos, capas neutras para despistar olhares. Em livrarias, alguns exemplares ficavam sob o balcão; em apartamentos, grupos pequenos liam em voz baixa, como quem passa adiante um fósforo aceso. Havia quem a chamasse de indecente e quem, entre professores e leitores, a defendesse como modernidade necessária; havia cortes, apreensões, e também guardiões discretos da memória. Na diáspora, editoras reuniram a obra e estudiosos como Michael Craig Hillmann e Farzaneh Milani consolidaram um campo crítico; aos poucos, reedições parciais circularam dentro do país, às vezes com aparatos que tentavam domesticá-la. Fora do Brasil, destacou-se a coletânea em inglês “Let Us Believe in the Beginning of the Cold Season” (New Directions, 2022, tradução de Elizabeth T. Gray Jr.), que consolidou a circulação contemporânea de sua poesia; no Brasil, ainda sem edição em livro, a autora segue conhecida por traduções parciais. No cinema, “Khāneh sīāh ast” renasceu em mostras e cinematecas, entrou em currículos universitários, ganhou cópia restaurada e passou a ser vista não como documento de uma doença, mas como método: atenção radical ao outro, elipse, sobriedade. Relido hoje, esse percurso revela mais que um caso de censura. Mostra como um Estado fabrica inadvertidamente um mito, como o subterrâneo se transforma em cânone, e como uma comunidade de leitores, dentro e fora do Irã, sustentou no escuro a chama que a vitrine recusou.

Quando a rua precisou de linguagem, voltou a ela. Em 2009, depois da eleição contestada, o verde do Movimento ocupou avenidas e telhados; celulares tremiam nas mãos, cartazes improvisados buscavam frases que coubessem no fôlego curto de quem corre. Entre as palavras urgentes, surgiram linhas de Forugh, copiadas de cadernos antigos e do rumor da memória, como se os anos 1960 tivessem deixado no idioma um abrigo para a pressa. Em 2022, após a morte de Jina Mahsa Amini, o brado “Mulher, Vida, Liberdade” atravessou praças e fronteiras; mulheres cortaram o cabelo ao ar livre, lenços arderam, e poemas dela reapareceram em faixas, muros, timelines. Não como santificação; como munição de lucidez. A palavra resistência costuma chegar gasta, mas junto de sua obra recupera nervo. Resistir, ali, não é gritar mais alto; é escrever com inteligência quando tudo pede ruído, manter a precisão no tumulto, lembrar que a imaginação também é uma forma de coragem.

O eco não ficou só dentro do país. Nas cidades da diáspora, cartazes em persa e em outras línguas trouxeram versos que pareciam ter sido feitos para a travessia; em auditórios universitários, “Khāneh sīāh ast” voltou a escurecer salas antes de reacender o olhar; em clubes de leitura, estudantes leram o que seus pais tinham lido em cópias de xerox. A circulação clandestina dos anos 1980 ganhou corpo público, como se a conversa finalmente pudesse acontecer à luz do dia. O que se aprende, relendo tudo isso, é que a obra sobreviveu porque ofereceu não um slogan, mas um método: atenção radical ao outro, recusa do sentimentalismo, forma como disciplina da esperança.

Ao norte de Teerã, no cemitério de Zahir Dowleh, a pedra de Forugh recebe flores frescas e bilhetes dobrados. Há dias de neve em que a caligrafia fica rígida; há tardes de calor em que alguém lê em voz baixa, de pé, como se a página pedisse postura. Um casal deixa um caderno escolar; uma senhora recolhe um papel que o vento empurrou; um menino soletra o nome, letra por letra. Não há epifania garantida, há convivência. O legado não se cumpre no culto, mas no aprendizado do risco: escrever com a própria vida, filtrar o mundo com a própria respiração, aceitar que nenhuma metáfora substitui um gesto. Ler Forugh hoje é admitir que o tempo da literatura não coincide com o tempo da política e, ainda assim, a forma pode enfrentar a violência com paciência.

O texto termina; a voz continua. Um cuidado final se impõe: a frase a seguir é amplamente atribuída a ela, embora a fonte exata permaneça disputada. O rigor pede a ressalva, a beleza pede a repetição, e a repetição, aqui, funciona como desejo: “Não tenho medo da morte. Tenho medo de não viver como quero”.

Revista Bula

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