Começa no balcão de embarque. Uma jovem do Ceará recolhe idiomas como quem junta chaves, aprende a ler rostos e horários antes de saber para onde vai. O nome é Florinda Soares Bulcão; Uruburetama no registro, Varig no crachá. Anos depois, Roma em 1968 a recebe entre Cinecittà e barricadas, e a câmera italiana encontra um silêncio que fala e uma beleza que o mercado apressaria em chamar de exótica. Ela responde com disciplina. O resto é a coreografia das cidades, Veneza, Milão, Roma, e a decisão de permanecer estrangeira mesmo quando a luz a reclama. Não é milagre; é artesanato: uma vida talhada na fricção entre origem e desejo, tradição e risco, olhar e ferida.
Florinda Soares Bulcão nasceu em Uruburetama, em 15 de fevereiro de 1941, filha de José Pedro Soares Bulcão, jornalista, poeta e político cearense, e de Maria Hosana. Cresceu entre Fortaleza e Rio de Janeiro, estudou inglês e francês, aprendeu taquigrafia e trabalhou como datilógrafa de engenharia, até que a cabine de um avião lhe abriu um mapa. Comissária da Varig, ganhou passaporte para outras cidades e outras vozes. No percurso, afinou o sobrenome à prosódia estrangeira, de Bulcão a Bolkan. As feições ficaram; o sal do Ceará, também. O resto foi disciplina.
Em 1968, Roma deixou de ser escala e virou endereço. A cidade ardia entre Cinecittà e barricadas, aristocracia em declínio e febre de modernidade; foi quando Marina Cicogna, produtora central do cinema italiano, a apresentou a Luchino Visconti na ilha de Ischia. A câmera demorou-se num rosto que fugia da estampa romana, beleza que o mercado apressou-se em chamar de exótica, mas feita de rigor, silêncio e uma firmeza que não pede licença. Veio um teste improvisado, uma aparição em “La Caduta degli Dei” (1969), e a maré virou. Em poucos meses, ela saiu das pontas para o centro do quadro. “Metti, una Sera a Cena” (1969), de Giuseppe Patroni Griffi, rendeu-lhe a Targa d’Oro no David di Donatello e deixou exposta a temperatura dessa presença: serenidade por fora, incandescência por dentro, a delicadeza que faz o plano respirar. O Ceará já estava longe e, paradoxalmente, latente.
O repertório que se segue é uma cartografia da Itália do período: política, inquieta, elegante e feroz. Em “Indagine su un Cittadino al di Sopra di Ogni Sospetto” (1970), de Elio Petri, ela é Augusta Terzi, amante e detonador de uma fábula negra sobre poder. O filme ganhou o Oscar de melhor filme internacional e tornou-se peça de referência sobre abuso de autoridade. Em “Anonimo Veneziano” (1970), de Enrico Maria Salerno, Bolkan habita um melodrama de água fria e música luminosa. Com Lucio Fulci, abre portas ao onírico e ao brutal: “Una Lucertola con la Pelle di Donna” (1971) e “Non Si Sevizia un Paperino” (1972). Em “Le Orme” (1975), de Luigi Bazzoni, percorre o labirinto de uma identidade que falha. No horizonte, ainda “Royal Flash” (1975), de Richard Lester, e a coprodução “The Last Valley” (1971), dirigida por James Clavell. Não há um tipo único, mas uma temperatura: personagens que se sustentam menos no gesto expansivo que no pensamento em cena.
Há um encontro que afina a lenda: Vittorio De Sica. Em “Una Breve Vacanza” (1973), ela é Clara, operária calabresa doente e exausta, e o filme converte a precariedade em urgência moral. A crítica americana percebe, e Los Angeles premia: em 1975, Bolkan recebe o primeiro prêmio de Melhor Atriz da LAFCA. O mito foi ganho a duras penas: conta-se que De Sica viu nela “olhos de quem conheceu a fome”, frase simples que, no fundo, nomeia uma ética de trabalho e de mundo. A interpretação caminha nesse fio: contenção, espanto, um pudor que fere.

Os prêmios não explicam tudo, mas dizem bastante. Florinda Bolkan foi a primeira atriz estrangeira a vencer o David di Donatello de Melhor Atriz, e o fez duas vezes: por “Anonimo Veneziano” (1970) e por “Cari Genitori” (1973), ambos dirigidos por Enrico Maria Salerno, feito raro em um país zeloso de suas tradições. Não se trata de uma coroação qualquer: é o reconhecimento de um timbre que não coincide com a caricatura do exotismo e, ao contrário, a subverte. Um Brasil interiorano pousado em Veneza, um sotaque afinado em Roma, uma inteligência dramática que escolhe o intervalo entre o não dito e o decisivo.
A vida privada se cruzou ao trabalho de modo pouco discreto e, ainda assim, sem folclore. Por duas décadas, ela foi companheira de Marina Cicogna, produtora e herdeira de uma linhagem que conectava aristocracia e indústria cultural. Cicogna produziu “Indagine su un Cittadino al di Sopra di Ogni Sospetto” (1970), revelou talentos e orquestrava cenas invisíveis fora do set. Juntas, Florinda Bolkan e Marina Cicogna compõem também um capítulo da história social do cinema europeu. Não há glamour gratuito aqui: há agência, desenho de carreira e uma parceria artística e afetiva que atravessou tempos menos hospitaleiros à diversidade.
Se a década de 1970 foi o auge, os anos seguintes procuraram outras formas de luz. Na Itália, a televisão tomou o centro do palco e “La Piovra” transformou o país em plateia: milhões diante da RAI acompanharam o comissário Corrado Cattani, vivido por Michele Placido, numa guerra que misturava Estado, finança e máfia. É ali que Florinda Bolkan se grava na memória popular como a condessa Olga Camastra, elegância fria e lealdades oblíquas; não apenas antagonista, mas zona moral cinzenta, desejável e perigosa ao mesmo tempo, um corpo político dentro do melodrama criminal. O Brasil reaparece não como lembrança protocolar, mas como retorno que ferve. Em 1987, na Rede Manchete, a minissérie “A Rainha da Vida” costura ficção e biografia: uma mulher sai do Ceará rumo a Roma e volta cercada de dinheiro e sombras, gesto que espelha passagens da própria trajetória de Bolkan. Ao seu lado está Raimundo Fagner, cantor e compositor cearense, no elenco, o que dá à narrativa um timbre de casa e exílio ao mesmo tempo. O Nordeste não é paisagem, é fratura. Para quem nasceu em município pequeno e aprendeu cedo a negociar com o mundo, o acerto de contas não termina; ele respira entre uma fala e outra, como se cada cena testasse a origem.
No fim dos anos 1990 e no início dos 2000, ela escolheu o outro lado da câmera. “Eu Não Conhecia Tururú”, filmado no Ceará, foi estreia e declaração de amor. Parte da crítica recebeu com frieza, mas o gesto ficou aceso: uma estrela internacional que abandona a trilha segura para transformar a própria origem em matéria de invenção. Há nisso uma teimosia generosa: voltar, ouvir, recolher vozes e filmar sem alarde. Mais que um movimento de carreira, foi um pacto com a terra que a formou.
Depois, o ritmo desacelera. A Itália volta a ser casa, e não apenas no sentido figurado. Em Bracciano, perto de Roma, Bolkan abre a Voltarina, agriturismo pensado como programa estético: pão ainda morno, azeite de Canino, cavalos ao fundo. A hospitalidade torna-se continuidade do cinema, outra encenação em luz natural e cheiros, com o mundo à mesa. Não é epílogo idílico; é coerência. Cozinhar, cultivar, receber: maneiras de medir o tempo.
Convém lembrar o começo para entender o desenho inteiro. A comissária de bordo da Varig que traduzia destinos no balcão das partidas; a jovem de Uruburetama, filha de um intelectual cearense, que deslocou o nome para caber em outra fonética; a atriz que recusou a histeria e preferiu a tensão silenciosa; a mulher que atravessou os salões do jet set, mas cultivou a rusticidade como valor e retorno. Seu catálogo de filmes forma uma constelação: Petri, De Sica, Visconti, Lucio Fulci, Giuseppe Patroni Griffi, Luigi Bazzoni. Não é pouco. Essa rota compõe uma história alternativa do cinema italiano, vista da borda, estrangeira, cearense, moderna.
Há também a correnteza dos fatos, para quem precisa de chão: o Oscar internacional de “Indagine su un Cittadino al di Sopra di Ogni Sospetto” para a Itália; dois David di Donatello de melhor atriz; o prêmio de melhor atriz da LAFCA por “Una Breve Vacanza”; a primeira estrangeira a triunfar como protagonista no Donatello. Tudo verificável. Mas os prêmios, sozinhos, não explicam por que a câmera se interessa por ela. Talvez por uma gravidade que não posa; talvez porque seu rosto, mais que belo, é legível, instrumento de leitura do mundo. E, ainda assim, a biografia que conta não se encerra. O que persiste é um estado de suspenso: a atriz que virou topografia afetiva de duas pátrias; que levou o sotaque do sertão à delicadeza cabisbaixa de Veneza; que aprendeu a habitar o intervalo entre a evidência e o mistério. Quando De Sica fala em “olhos de quem conheceu a fome”, não oferece metáfora; nomeia uma ética de presença. Por isso Florinda Bolkan, vista de hoje, não parece uma estrela antiga, mas uma forma de resistência: mulher que se inventa em trânsito e devolve ao cinema seu ofício primeiro, mostrar, sem barulho, onde a vida ainda arde.