5 autores que foram cancelados antes da era do cancelamento

5 autores que foram cancelados antes da era do cancelamento

Na casa que afunda sozinha, sempre sozinha, ninguém quer saber quem jogou o fósforo. Apenas que queimou. O que hoje se entende como “cancelamento” já existia antes de receber nome, algoritmo ou avatar. Ocorriam em outro ritmo, menos digital, mais sedimentar, mas com impactos duradouros. Não havia hashtags. Apenas o desaparecimento gradual: a poeira sobre as lombadas, a ausência nos currículos, os nomes omitidos nas conversas públicas. Ainda assim, esses nomes não sumiram. Permanecem nas margens das frases, nos prefácios discretos das novas edições, no desconforto que emerge quando uma obra mobiliza admiração e, ao mesmo tempo, evoca lembranças que não se alinham facilmente ao presente.

H. P. Lovecraft, por exemplo, desenvolveu uma literatura voltada ao horror cósmico, marcada por atmosferas opressivas e mitologias que sublinham a insignificância humana diante de forças inatingíveis. Seus textos, complexos, densos, quase barrocos, formam a base do que hoje se chama horror existencial. Paralelamente, sua correspondência pessoal e alguns escritos revelam posicionamentos raciais excludentes, que à época não destoavam de certos círculos nativistas da Nova Inglaterra, mas que hoje geram revisões críticas quanto à relação entre sua visão de mundo e seus enredos.

Louis-Ferdinand Céline ficou conhecido por “Viagem ao Fim da Noite”, romance que rompeu com o tom clássico da prosa francesa, incorporando ritmo oral, colapsos sintáticos e observações corrosivas sobre a guerra, a miséria e a experiência urbana. Nos anos 1930 e 40, publicou panfletos em que articulava discursos antissemitas e antidemocráticos, alinhando-se ao governo de Vichy e ao colapso ideológico da França ocupada. Condenado após o fim da guerra e mais tarde anistiado, continuou escrevendo, mas em clima de controvérsia duradoura.

Charles Bukowski construiu sua obra a partir de uma escrita de autoficção direta, coloquial e centrada em experiências de marginalidade urbana, alcoolismo e relações sexuais sem idealização. Em “Mulheres”, em especial, a figura do narrador se estrutura na repetição de relacionamentos marcados por instabilidade e objetificação. Leitores e críticos apontaram leituras diversas, ora como um retrato cru de uma subjetividade decadente, ora como a perpetuação de estereótipos e dinâmicas de gênero desequilibradas, refletindo valores presentes na sociedade norte-americana da segunda metade do século 20.

Ezra Pound, poeta modernista e figura central na consolidação de autores como T. S. Eliot e James Joyce, elaborou “Os Cantos” ao longo de décadas. O poema extenso é fragmentário, erudito, poliglota. Durante a Segunda Guerra Mundial, fez transmissões radiofônicas na Itália fascista e expressou apoio ao regime de Mussolini, além de críticas sistemáticas a instituições financeiras, muitas delas expressas em termos que hoje são reconhecidos como alinhados ao antissemitismo europeu da época. Foi preso pelos Estados Unidos e internado num hospital psiquiátrico, o que evitou sua condenação por traição.

Oscar Wilde, dramaturgo e ensaísta britânico, foi condenado em 1895 sob a acusação de “indecência grave”, prevista pela legislação britânica da época para criminalizar relações entre homens. Durante sua prisão, escreveu “De Profundis”, uma longa carta que articula reflexões sobre amor, perda, vergonha pública e espiritualidade. Sua trajetória, de sucesso nos palcos londrinos à prisão e posterior exílio, é hoje compreendida à luz das tensões entre estética, identidade e as convenções morais do final da era vitoriana.

Esses nomes não se agrupam por suas escolhas individuais, mas pelos efeitos que tais escolhas, ou circunstâncias, geraram em suas trajetórias públicas. Alguns foram afastados do cânone por questões políticas, outros por práticas à margem da legalidade vigente em seu tempo. Em todos os casos, a literatura permanece, desafiando interpretações lineares. A leitura contemporânea não exige absolvição, mas atenção. A escuta de suas obras, com suas contradições e potências, é também uma escuta do tempo em que foram escritas e do tempo que ainda reverberam. 

Carlos Willian Leite

Jornalista especializado em jornalismo cultural e enojornalismo, com foco na análise técnica de vinhos e na cobertura do mercado editorial e audiovisual, especialmente plataformas de streaming. É sócio da Eureka Comunicação, agência de gestão de crises e planejamento estratégico em redes sociais, e fundador da Bula Livros, dedicada à publicação de obras literárias contemporâneas e clássicas.