Nietzsche não odiava livros da mesma forma que se odeia um gosto ruim ou uma ideia tola. O que ele detestava, com um fervor quase clínico, eram estruturas inteiras de pensamento que, segundo ele, drenavam a força da vida. À primeira vista, isso pode parecer exagero — um filósofo ensandecido por sua própria retórica. Mas é mais incômodo do que isso. Para Nietzsche, certas obras não apenas erravam; elas adoeciam. Criavam o tipo de espírito que dizia sim ao sofrimento e não à potência. O tipo de leitura que conforta, organiza, moraliza — e, justamente por isso, mata. É nessa chave que sua repulsa por Kant, Rousseau, Darwin, Stendhal, Victor Hugo e George Eliot ganha contornos mais densos. Nenhum deles era desprezível. Pelo contrário: eram gigantes. E foi por isso que ele os considerou tão perigosos. Cada um, à sua maneira, representava uma tentativa bem-sucedida de enobrecer aquilo que Nietzsche queria ver destruído: a culpa moral, o ressentimento refinado, a compaixão tornada virtude, a submissão travestida de razão.
Ele não escrevia contra livros, mas contra o que esses livros cristalizavam — e, no limite, santificavam. Kant, com sua razão fria e universal, era a negação do trágico. Rousseau, com sua pedagogia sentimental, parecia ensinar que o instinto era um erro curável. Darwin oferecia à humanidade uma desculpa científica para se acomodar na adaptação. Hugo, para Nietzsche, canonizava o sofrimento como redenção. Eliot, com sua lucidez triste, parecia compor uma moral de gente cansada, ética demais para viver. E Stendhal, ainda que admirado, oferecia o retrato de um tipo de alma ressentida demais para criar algo novo. Nada disso se resume a rótulos. O incômodo de Nietzsche era mais sutil: ele percebia, nas entrelinhas desses autores, a arte de tornar a fraqueza desejável. Não há como ler suas críticas sem ouvir o eco de um desconforto profundo, quase pessoal. O que está em jogo ali não é só filosofia — é uma disputa por qual tipo de ser humano se deve cultivar.

Dorothea Brooke, jovem idealista e de espírito elevado, deseja mais do que o destino domesticado reservado às mulheres de sua época. Na tentativa de viver uma vida significativa, lança-se a um casamento infeliz com um homem que personifica o saber árido e o desapego emocional. A partir daí, desenha-se uma narrativa múltipla, onde dramas pessoais e dilemas sociais se entrelaçam num mosaico de pequenas tragédias e esperanças contidas. A voz narrativa é precisa, irônica, compassiva — capaz de sondar com agudeza tanto as motivações mais nobres quanto as pequenas vaidades. Eliot não julga, mas revela. O mundo de Middlemarch pulsa sob o véu da moral vitoriana, e cada gesto dos personagens ecoa uma rede invisível de expectativas, convenções e desilusões. Nietzsche leu esta obra como um espelho do niilismo educado. Para ele, Eliot era herdeira da moral cristã, mas sem a fé que a sustentava — cultivava valores altruístas sem reconhecer que estavam esvaziados de transcendência. Dorothea, com seu desejo de justiça e pureza, representava para ele uma “alma boa domesticada”, vítima da compaixão como ideal, não como potência. A prosa elegante da autora ocultava, em sua visão, um mundo de afetos enfraquecidos e espírito resignado — uma santidade laica que já não ousava afirmar nada.

Jean Valjean, ex-condenado marcado pela injustiça, atravessa uma existência de fuga, redenção e dilemas morais enquanto o mundo ao seu redor — a França pós-napoleônica — transborda desigualdade, fé e revolta. A narrativa, densa e expansiva, intercala a trajetória do protagonista com digressões filosóficas, retratos sociais e reflexões religiosas. O tom é grandioso, profundamente compassivo, quase evangélico em sua crença no poder da misericórdia e da transformação. A linguagem, mesmo nos momentos de miséria absoluta, se eleva como um cântico ético, onde os pequenos gestos de bondade adquirem peso teológico. Valjean, perseguido por um sistema implacável, torna-se imagem do homem capaz de quebrar o ciclo da violência pela força interior do perdão. Nietzsche, no entanto, via nessa construção uma estética da humilhação. Para ele, a compaixão como virtude central era sintoma de fraqueza moral. A figura de Valjean, redimido pelo sofrimento e pela renúncia, representava o ideal do cristianismo decadente: glorificar o sacrifício, o ressentimento, a culpa. A justiça de Hugo era, em sua visão, uma justiça de escravos — onde os nobres sentimentos não libertam, mas domesticam. Por isso, este romance, tão celebrado por sua humanidade, foi para Nietzsche a perfeita encarnação do que ele chamaria de “moral dos ressentidos travestida de redenção”.

Com precisão metódica e sem apelo à dramaticidade, Darwin delineia um sistema que transforma a diversidade da vida em resultado de pequenas variações acumuladas ao longo do tempo. O autor, cauteloso e persistente, conduz o leitor por uma sequência lógica de observações, comparações e inferências, com a serenidade de quem se põe a serviço da natureza, não acima dela. A teoria da seleção natural é revelada em linguagem técnica, mas acessível, com ênfase nos mecanismos da adaptação e na sobrevivência diferencial dos organismos. Não há heróis, tampouco finalidade. A vida, nesse modelo, não responde a um plano moral, mas ao acaso e à utilidade. O que sobrevive não é o mais nobre, e sim o mais funcional. Nietzsche viu neste movimento conceitual um risco profundo: ao eliminar qualquer grandeza trágica ou valor afirmativo, Darwin dissolvia o humano em processos cegos e niveladores. A beleza selvagem da vida — sua vontade de potência — era reduzida a estatísticas de adaptação. O “forte” não era mais o criador de valores, mas aquele que se ajustava melhor. Para Nietzsche, esta obra representava o triunfo do utilitarismo biológico sobre o espírito. Uma metafísica sem transcendência, sem estética, sem Dionísio — apenas um mundo em que o rastejar é mais eficaz do que o voar.

Julien Sorel, jovem de origem humilde e ambição implacável, vê na cultura e na astúcia as únicas armas para atravessar o muro da aristocracia francesa. A narrativa, conduzida com ironia contida e precisão psicológica, traça sua ascensão pelo poder e sua queda pelo orgulho. Em um mundo onde nada é genuíno e tudo se disfarça — do amor à religião, da política à virtude — o protagonista aprende a performar papéis com frieza calculada, oscilando entre o oportunismo e um desejo autêntico de grandeza. A escrita de Stendhal combina agudeza moral e leveza estilística, expondo a hipocrisia social sem recorrer ao panfleto. É uma tragédia moderna: o idealismo esbarrando no cinismo do mundo. Nietzsche, embora reconhecesse a inteligência da obra, desconfiava profundamente de sua anatomia moral. Para ele, Julien encarnava o tipo reativo — o ressentido refinado que, incapaz de criar novos valores, joga o jogo dos dominantes com revolta silenciosa. A esperteza de Sorel, para Nietzsche, era produto de uma alma ferida, que imitava os fortes sem jamais sê-lo. Via no romance um retrato do espírito moderno degenerado: culto, mas vazio; rebelde, mas submisso. Um exemplo da psicologia da decadência — onde o desejo de ascensão já nasce envenenado pela negação de si mesmo.

Um tratado monumental que não se curva às paixões, nem às particularidades do mundo sensível. Em voz impessoal e sistemática, Kant organiza a razão como um tribunal: o sujeito transcendental julga os próprios limites do conhecimento. Nada escapa à ordenação minuciosa das categorias, dos juízos sintéticos a priori, da distinção entre fenômeno e númeno. Não há drama humano aqui — apenas a arquitetura rigorosa de uma metafísica que se recusa a tocar o corpo ou o caos. O autor ergue muros entre a razão e a experiência, impondo freios a tudo que excede a lógica. A prosa, embora seca e impenetrável em muitos trechos, reflete com fidelidade o espírito iluminista que recusa o enigma e exige coerência formal. O mundo que emerge dessas páginas é limpo demais, preciso demais — como se pulsar significasse erro. Nietzsche, ao se deparar com essa obra, a interpretou como um gesto de empobrecimento vital. A racionalidade kantiana, para ele, era não apenas inócua, mas perigosa: anulava o impulso criador e a potência do instinto em nome de uma moral universal que amputava o trágico. Kant representava o “filósofo dos castrados”: genial, mas paralisado pela fé no dever e no conceito. Assim, este livro tornou-se símbolo do que Nietzsche mais desprezava — a domesticação do pensamento, feita em nome da razão pura.

Através de uma ficção pedagógica cuidadosamente construída, Rousseau delineia a formação ideal de um menino criado à margem da sociedade, em harmonia com os ritmos da natureza. A voz do autor é calma, benevolente, quase pastoral — conduzindo o leitor por um percurso em que o educador não apenas molda, mas protege o educando da corrupção moral do mundo civilizado. Cada fase do crescimento é acompanhada por reflexões sobre liberdade, religião, sexualidade e virtude, como se a alma humana pudesse ser lapidada sem violência, apenas com paciência e método. O texto alterna momentos narrativos com longos blocos filosóficos, onde se desenha o sonho de um sujeito íntegro, guiado pela razão natural. Nietzsche, porém, veria neste tratado um símbolo da domesticação sentimental moderna. Para ele, Rousseau transfigurava a fraqueza em ideal — disfarçava ressentimento sob a aparência de pureza. A imagem do homem naturalmente bom, para Nietzsche, era não só ilusória, mas antinatural: uma forma de negar os impulsos trágicos e criadores da existência. O educador rousseauniano não libertava, mas moldava à imagem de uma moral piedosa e ressentida. Por isso, este livro não era, para Nietzsche, um tributo à liberdade, mas um manual de castração espiritual — uma “pedagogia do rebanho”, travestida de utopia.