Milton Nascimento chegou a Belo Horizonte em 1963 com a voz cheia de sombra e rumor. Veio de Três Pontas como quem atravessa um portal, não geográfico, mas sonoro. Alugou um quarto no Edifício Levy, centro da cidade. Foi ali, num desses dias em que a música paira no ar antes de ter dono, que conheceu a família Borges. Marilton, o mais velho, tocava teclado em bailes. Márcio escrevia poemas nos cadernos escolares. Lô, o menor, era só um menino magro, de olhos silenciosos e escuta funda.
A amizade não começou com declarações nem afinidades declaradas. Começou com espanto. Milton tocava violão na escadaria do prédio. Lô ouviu aquele som vindo de baixo como se escutasse pela primeira vez o mundo. Milton foi convidado a subir. Na cozinha da família, tomou café com Dona Maricota, a mãe de todos os meninos que viriam depois. Foi ficando. A casa dos Borges virou território de ensaio e revelação. No piano vertical encostado à parede, começou a nascer uma linguagem, não planejada, não nomeada, que mais tarde se chamaria, por acaso e ironia, Clube da Esquina. O nome surgiu como brincadeira doméstica de Dona Maricota para nomear os encontros do grupo, anos antes de qualquer disco.

Não era grupo ainda. Não era movimento. Era uma frequência. Milton trazia o jazz, os spirituals, o existencialismo da solidão. Lô trazia a obsessão por Beatles, os acordes deslocados, a pressa de quem ainda não sabe o que faz, mas já está fazendo. Márcio Borges escrevia como quem costura silêncio. Fernando Brant viria depois, com suas palavras oblíquas e leves. Toninho Horta, Beto Guedes, Nelson Angelo, Wagner Tiso… Não havia liderança, não havia estética definida. Era uma amizade em estado de criação. Como anotou Nelson Motta, “a música estava ali antes da forma”.
Essa gênese informal floresceu lentamente, atravessando os anos 60 enquanto o país endurecia. O golpe militar de 1964 engatilhava sua máquina de opressão, e ao mesmo tempo, em Santa Tereza, o violão continuava soando baixo, como quem recusa a pressa da história. Milton foi cantar com Elis Regina, compôs “Travessia” com Fernando Brant e venceu o Festival Internacional da Canção em 1967. Tornou-se nacional. Mas jamais deixou de voltar à casa dos Borges. Quando Lô cresceu e começou a compor, Milton ouviu e reconheceu: havia ali a mesma fresta.
Em 1971, o grupo foi para a praia de Piratininga, em Niterói. Uma casa alugada virou residência criativa. Era o tempo da Odeon, que dera carta branca a Milton para gravar seu novo álbum. Ele propôs: queria um disco coletivo. A gravadora hesitou, mas cedeu. Passaram dias compondo no calor do litoral e noites no estúdio da EMI no Rio. Lô, com apenas 18 anos, escreveu melodias inteiras em tardes, como “Paisagem da Janela”, feita após uma viagem a Diamantina. Wagner Tiso cuidava de muitos arranjos. Beto Guedes revezava baixo e violão. Tudo flutuava.
Em março de 1972, surgiu o disco “Clube da Esquina”, atribuído a Milton Nascimento e Lô Borges, embora sua alma fosse coletiva. Um álbum duplo com 21 faixas. Um delírio. Um acontecimento sem comparação na discografia brasileira até então. Misturava Beatles, Debussy, jazz modal, latinidades, modinhas mineiras, psicodelia, rock progressivo, e ainda assim era Brasil. Não apenas Brasil, era Minas. A Minas interior, montanhosa, mística e telúrica, que recusava o centro e falava de uma utopia possível.

A crítica torceu o nariz. Na época, o semanário “O Pasquim” o chamou de “confuso”, “autocomplacente”. A “Rolling Stone” brasileira, décadas depois, o colocaria entre os dez maiores discos do país. O tempo, como sempre, entendeu melhor do que os críticos. O disco foi reavaliado, redescoberto, relançado. Ganhou edições comemorativas, edições em vinil duplo remasterizado, traduções de suas letras na França, no Japão. Em 2020, a “Rolling Stone” americana o incluiu na lista dos “500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos”. David Byrne o chamou de “um dos discos mais sofisticados já feitos”. O livro “1001 Albums You Must Hear Before You Die” selou seu status global. Em 2022, um podcast brasileiro elegeu “Clube da Esquina” como o maior disco nacional de todos os tempos.
Mas nenhuma dessas consagrações explica a estranheza que se sente ao ouvi-lo ainda hoje. É um disco que não se entrega. Começa com “Tudo que Você Podia Ser”, samba disfarçado de lamento hippie. Passa por “Cravo e Canela”, um rock de harmonia abrasileirada. Em “O Trem Azul”, Lô canta com a alma nas mãos. “Cais”, composta por Milton e Ronaldo Bastos, é pura suspensão. E “San Vicente” parece saído de uma igreja atlântica, um hino exilado. Cada faixa é um mundo. Cada mundo contém um país. Cada país inventa uma lembrança.
Não se trata de resistência explícita. Mas há, ali, uma recusa ao regime. Ao regime estético, ao regime político, ao regime da pressa. As letras evitam panfletos. Preferem paisagens, símbolos, cantos interiores. O silêncio também é música. E talvez por isso incomode tanto, porque desafina com o tempo.
A sonoridade do disco é inseparável da amizade que o criou. Milton e Lô funcionam como espelhos de uma mesma inquietação. Lô diria, anos depois, que ouvir Milton cantar era “como escutar um anjo”. Não é metáfora. É vertigem. Milton é voz que não pertence inteiramente à terra. Sua interpretação em “Nada Será Como Antes” ou “Saídas e Bandeiras” parece vir de outra frequência, meio espiritual, meio ancestral. Lô, ao contrário, tem a urgência do corpo. Suas melodias tropeçam, pulam, relampejam.

O que mais impressiona é que não houve plano. O disco é resultado de um intervalo. De uma possibilidade. De uma confiança entre jovens que se reconheceram como irmãos de timbre e tempo. O que existia antes de 1972 é o que deu corpo à obra. E o que veio depois é apenas consequência.
Cinquenta e três anos depois, “Clube da Esquina” não é apenas um disco importante. É uma espécie de país paralelo. Um Brasil possível. Um Brasil onde a infância não foi esmagada, onde o afeto ainda é pauta, onde a canção tem tempo para se formar. E por isso continua ecoando. Porque ainda falta. Ainda dói. Ainda precisamos dele.
Milton, com seus 82 anos, canta menos. Mas quando canta, o tempo para. Lô, mais recolhido, continua compondo canções que se movem como pedras em córrego. Os dois sabem que não se repete aquilo que foi puro. E talvez por isso o disco nunca tenha tido uma continuação direta. “Clube da Esquina 2”, lançado em 1978, é belo. Mas é outro planeta. O primeiro é inimitável.
Ouvir “Clube da Esquina” hoje é aceitar um convite para uma escuta sem rede. Não há promessa de recompensa. Mas há algo ali. Algo que só pode ser compreendido com demora. Como as cartas que chegam depois do luto. Como os abraços que lembramos sem saber se aconteceram.
É música que resiste por ser maior do que seus autores. Música que nasceu de uma amizade, mas que virou linguagem. Que virou aura. Que virou país.