Cinquenta anos depois, o Clube da Esquina ganha luto e eternidade com a morte de Lô Borges

Cinquenta anos depois, o Clube da Esquina ganha luto e eternidade com a morte de Lô Borges

Belo Horizonte, 1963. Um rapaz chega de Três Pontas com a voz cheia de sombra e rumor. Não atravessa um mapa; atravessa um registro de frequência. Milton Nascimento aluga um quarto no Edifício Levy, centro da cidade. Numa escadaria, o violão risca o ar; no 3º andar, um menino escuta como se o mundo tivesse, de repente, encontrado o tom. O convite a subir foi natural. A cozinha dos Borges: café de Dona Maricota, pratos empilhados, risos no corredor. Tornou-se atelier. No piano vertical encostado à parede, sem método e sem rótulo, nasceu uma sintaxe que anos depois, por brincadeira doméstica, ganharia nome: Clube da Esquina.

Não era grupo. Não era movimento. Era frequência. Milton trazia o jazz e o spiritual, a solidão como disciplina. Marilton, tecladista de bailes, tinha o pulso de pista; Márcio costurava silêncio no caderno; Lô, magro e atento, afinava obsessões Beatles; Fernando Brant chegaria com palavras oblíquas; Wagner Tiso, Toninho Horta, Beto Guedes, Nelson Angelo. Não havia liderança a disputar, nem programa estético a defender. Havia amigos e um repertório ainda sem dono. Muitas vezes a música está no ambiente antes da forma que a captura.

Lô Borges
Lô Borges morreu na noite de 2 de novembro de 2025, aos 73 anos, em Belo Horizonte. Cofundador do Clube da Esquina, parte deixando a suspensão e depois o entendimento

O país, entre 1964 e o fim da década, fechava-se. A máquina da pressa histórica rugia, e em Santa Tereza os ensaios teimavam em baixo volume. Milton cantou, escreveu com Brant e, em 1967, levou “Travessia” ao Maracanãzinho; a canção ficou em segundo lugar no Festival Internacional da Canção, e o intérprete foi consagrado como melhor cantor. O Brasil, enfim, o ouviu. Belo Horizonte, porém, nunca deixou de ser o endereço de retorno, a casa dos Borges como afinador de bússolas.

Em 1971, a língua do mar em Piratininga, Niterói, começou a ditar um método: tardes de composição com janelas abertas, noites de estúdio no Rio. Milton propôs à Odeon um disco coletivo. Hesitaram, aceitaram. Lô, com 19 anos, riscava melodias inteiras como quem rabisca um mapa novo. “Paisagem da janela” nasceu de uma viagem a Diamantina. Wagner Tiso montava arquiteturas harmônicas como quem deriva linhas de força. Beto alternava violão e baixo. Nada era propriedade. Era sopro compartilhado.

Em março de 1972, apareceu o que não se compara: “Clube da Esquina”, de Milton Nascimento e Lô Borges, e de todos. Álbum duplo, 21 faixas, uma pele de influências que não esconde as costuras: Beatles e Chopin no mesmo passo, jazz modal, latinidades, modinhas, psicodelia, rock progressivo, e tudo, ainda assim, Minas. Não um totem nacional, mas um país interior, montanhoso, místico, telúrico, que recusa o centro para inventar outro. A capa, fotografada por Cafi, não mostra os autores: são dois meninos, Cacau e Tonho, numa estrada perto de Nova Friburgo. Infância como horizonte, não como lembrança.

A recepção, à época, estranhou o excesso e a liberdade. Parte da crítica foi fria, e o tempo trabalhou pelo disco. Quando os ouvidos calibraram a mistura, “Clube da Esquina” passou a circular como referência incontornável, com reedições e edições comemorativas. Em 2022, o projeto “Discoteca Básica” colocou o álbum no topo de uma consulta com 162 especialistas. Em 2024, a americana “Paste” posicionou “Clube da Esquina” no 9º lugar entre os 300 melhores álbuns de todos os tempos, reconhecimento raro para um disco brasileiro.

Mas prêmios não resolvem a estranheza que o disco ainda provoca. Ele se recusa a se explicar. Abre com “Tudo que você podia ser”, samba em disfarce hippie, e logo desloca o chão com “Cravo e canela”, rock que aprendeu a frasear em português. Em “O trem azul”, Lô canta com a urgência do corpo. Em “Cais”, Milton e Ronaldo Bastos suspendem o tempo. “San Vicente” sopra como liturgia atlântica. Cada faixa é mapa e miragem. Se há política ali, ela não precisa de slogans: recusa-se a obedecer regimes, o estético, o cronológico, o do medo. Sem panfleto, prefere paisagens e símbolos. A pausa também canta.

Milton Nascimento
Milton Nascimento, ao centro de uma parceria com Lô Borges que moldou o Clube da Esquina

A sonoridade é inseparável da amizade. Milton e Lô funcionam como espelhos que não se repetem. Milton canta por dentro da terra e por fora dela, uma emissão que não precisa explicar de onde veio; peça “Nada será como antes” e veja a matéria tremer. Lô traz a pressa das canções que tropeçam e avançam, melodias que aprendem o chão enquanto caminham. Wagner Tiso escreve arranjos que respiram; Toninho Horta insinua voicings que, em outra geografia, chamariam modern jazz e aqui soam simplesmente naturais; Beto Guedes segura as margens do rio enquanto ele cresce.

Não houve plano. Houve intervalo. Um acordo tácito entre jovens que se reconheceram pelo timbre. O que existia antes de 1972, escadas, pianos verticais, cafés de cozinha, deu corpo à obra. O depois foi desdobramento. “Clube da Esquina 2” (1978) é belo, mas de outro planeta, parente próximo, não gêmeo. O primeiro é irrepetível, não por misticismo, mas por circunstância. É preciso que a cidade, os corpos e um estúdio concordem ao mesmo tempo.

Em 3 de novembro de 2025, a família de Lô Borges confirmou sua morte, aos 73 anos, em Belo Horizonte. Internado desde 17 de outubro, ele morreu na noite de 2 de novembro. A ausência de um dos cofundadores mais luminosos do Clube da Esquina chega como chegam certas modulações no disco. Primeiro a suspensão, depois o entendimento.

Talvez por isso “Clube da Esquina” continue a ecoar com a clareza dos assombros. Porque ainda falta. Porque ainda dói. Porque o país paralelo que ali se propõe, onde a infância não foi esmagada, onde o afeto é pauta, onde a canção tem tempo de formar-se, segue sendo, a cada audição, uma hipótese de Brasil. Ouvir o álbum no rastro dessa notícia é voltar à cozinha dos Borges e perceber que a música, de fato, estava na sala antes da forma. A forma, naquele 1972 de março, apenas aprendeu a recebê-la. E nós, por sorte, aprendemos a reconhecê-la.

Carlos Willian Leite

Jornalista especializado em jornalismo cultural e enojornalismo, com foco na análise técnica de vinhos e na cobertura do mercado editorial e audiovisual, especialmente plataformas de streaming. É sócio da Eureka Comunicação, agência de gestão de crises e planejamento estratégico em redes sociais, e fundador da Bula Livros, dedicada à publicação de obras literárias contemporâneas e clássicas.