Crescer nos anos 80 sem internet: quando a infância cabia numa rua sem wi-fi

Crescer nos anos 80 sem internet: quando a infância cabia numa rua sem wi-fi

Crescer nos anos 80 era estar do lado de fora do mundo, sem saber que o mundo existia. A infância acontecia nas bordas, nas frestas, no vácuo entre o rádio AM da cozinha e o chiado da televisão de válvula. Não havia Internet, e isso não era uma ausência — era o estado natural das coisas. Ninguém estranhava o silêncio. Ele fazia parte do chão, da hora do almoço, das casas de reboco grosso onde se dizia: “menino criado com liberdade dá trabalho só depois”.

Era fácil se sentir um pobre homem da Póvoa de Varzim, como escreveu Eça, mesmo sem saber onde ficava a Póvoa. Mesmo sem saber o que era ser pobre, ou homem, ou europeu. Havia algo cravado no corpo de quem crescia no interior de Goiás, de Minas, de São Paulo: a sensação de existir longe demais de tudo. E talvez por isso mesmo o mundo parecesse mais real. Mais áspero. Mais inteiro.

Nos interiores do país, a infância era de barro. De quintal. De bicicleta Monark com um freio só. As ruas tinham cachorro magro, caminhão-pipa e árvore de casca grossa. As janelas se abriam cedo e fechavam com novela. As lojas fechavam no almoço. E o tempo, esse bicho sem pressa, se arrastava feito lagarta depois da chuva.

Em Minas, a brisa tinha gosto de ferrugem e folha queimada. O pão era duro nas pontas e quente por dentro. O açougueiro sabia o nome de cada cliente. O padre andava a pé. O bar da esquina vendia fiado porque era assim. Em Goiás, as tardes explodiam em calor que dobrava a sombra e estalava as telhas. A escola ficava longe. O recreio era poeira. A chegada da televisão a cores parecia milagre. A troca da fita no videocassete era liturgia doméstica. Em São Paulo, mas longe da capital, em Araraquara, em Botucatu, em Franca, as cidades pareciam esperar alguma coisa que não vinha. E enquanto não vinha, criavam rotina.

A rotina era forte. Tinha cheiro, tinha cor. As vozes da rua entravam pela janela. A criança ouvia, memorizava, aprendia. Não se tratava de opinião, tratava-se de sobrevivência. Sabia-se quando falar, quando calar, quando correr. E quando mentir com convicção para escapar da surra e da vergonha.

As famílias existiam como podiam. Nem sempre inteiras, nem sempre justas. Havia o pai cansado. A mãe que batia e chorava depois. A avó que mandava mais do que parecia. Os tios que desapareciam por um tempo e voltavam com histórias tortas. E havia a criança no meio disso tudo, absorvendo com o corpo o que ninguém dizia.

As cidades não tinham pressa nem horizonte. O horizonte era o muro da escola, a cerca do sítio, o barulho do trem passando à noite. A infância era atravessada por essa lentidão de mundo que não se sabia ser velho. Só era.

As ruas eram de terra, às vezes calçadas com mosaico antigo. As bicicletas tinham dínamo. Os interruptores faziam barulho. Os armários guardavam roupas com cheiro de bolinha de naftalina. O jornal vinha dobrado com barbante. Se o primo da capital trazia uma novidade — um relógio digital, uma pulseira de neon — aquilo virava centro de gravidade da rua inteira por uma semana.

Mas também havia dor. A dor sem legenda. O abuso que não tinha nome. A vergonha escondida atrás da cortina. O corpo que crescia errado. A criança que sumia e ninguém perguntava muito. A escola que batia. O hospital longe. A boca que não dizia. E mesmo assim, aprendia-se a sobreviver. Sem estatística, sem campanha, sem voz.

Crescer sem internet era crescer sem o outro como espelho constante. Ninguém sabia se era bonito, ou feio, ou estranho, até alguém dizer. E às vezes ninguém dizia. Então você se inventava com o que dava: com a voz que tinha, com os desenhos que fazia, com a música que repetia no rádio até furar o ouvido.

Não havia consulta rápida. Se você quisesse saber alguma coisa, perguntava. Se não soubesse a quem perguntar, ficava sem saber. E não morria por isso. A ignorância era coletiva, e por isso mesmo mais leve. Só quem sabia muito era o professor, o padre e o cara da locadora.

A fé era parte do dia. A missa, às vezes, era mais evento que a feira. A feira era mais importante que a notícia. A notícia chegava atrasada, embolada, pela boca dos outros. E o que não se sabia, inventava-se. Porque era preciso viver com algum tipo de sentido. Às vezes, a mentira funcionava melhor.

Hoje, parece tudo pequeno. Parece falta, falha de sistema. Mas era só o mundo como era. A infância como ela se dava. E nesse vazio imenso, havia espaço para sentir. Para criar. Para sofrer com calma. Para errar sem ser arquivado.

Não havia aplicativo. Havia o quintal. A varanda. A avó dizendo “sai dessa cadeira, menino, vai brincar”. E a gente ia. E voltava. Voltava sujo, mas voltava inteiro.

Eça disse: sou um pobre homem da Póvoa de Varzim. Talvez cada um que cresceu no Brasil do interior dos anos 80 pudesse dizer o mesmo, com as palavras que tivesse. Porque o que se foi não foi só uma década — foi uma condição de mundo. Um tempo que ensinava a suportar sem distração. A esperar sem saber. A imaginar por sobrevivência.

Não há volta para isso. Nem deve haver. Mas também não deve haver esquecimento. Porque há lições na lentidão, na ignorância compartilhada, na dor sem curtida, na alegria que não foi filmada. Há beleza naquilo que não pode ser recuperado. E o que não volta, às vezes, é o que mais nos forma.