Ele costumava marcar com uma estrela azul os parágrafos bons. Um gesto antigo, aprendido num estágio mal pago, no final dos anos 1980, numa pequena editora de Ribeirão Preto, quando ainda se imprimia tudo. A caneta Bic azul escorria de tanto uso, o papel era rascunho de uma tese esquecida sobre Guimarães Rosa. Mais de trinta anos depois, ele ainda marcava com azul, como quem insiste em um rito mesmo depois do altar ter sido queimado.
Chamam-no de leitor profissional, mas é mais como faxineiro de palavras. Ou enfermeiro de textos terminalmente doentes. Ou um tipo de órfão que adotou livros rejeitados. Ele já leu romances que cheiravam a mofo, que vieram mal diagramados, com cartas de apresentação redigidas como súplicas. “Não tenho mais ninguém que me leia. Por favor, me diga se presto.” Uma vez, recebeu um envelope com cinco folhas e uma rosa prensada. Achou bonito. Mas o texto era ilegível. Ainda sente culpa por não ter respondido.
Durante anos ele acreditou que era uma espécie de curador. Depois entendeu que era só um filtro. A diferença é brutal. O curador dá sentido. O filtro impede o lixo de passar. E a maior parte era lixo. Não lixo como metáfora; lixo mesmo. Frases sem sujeito, personagens que falavam sozinhos no escuro, narradores que morriam na página dois, voltavam na quatro — e pediam desculpa na seis.
Mas havia aqueles dias. Raros. Em que uma história o atravessava como caco de vidro. Uma vez, um autor de Minas — nunca publicado — escreveu sobre um pai que esfarelava pão no bolso para alimentar os pássaros, mesmo com Parkinson. A cena durava meia página. Ele parou de ler. Chorou com raiva. Xingou o autor. Nunca teve coragem de ligar pra ele.
Ser leitor profissional, ele dizia, é ter uma lista de fantasmas: textos que deveriam ter sido publicados, autores que foram recusados no último minuto, contos que se perderam por uma vírgula mal colocada. Tem uma pasta no computador chamada “Quase”. Às vezes abre. Nunca lê.
Ele sabe coisas. Coisas que ninguém que não leu 850 originais em silêncio absoluto saberia. Sabe, por exemplo, que autores inseguros escrevem demais. Que quem se acha genial evita adjetivos. Que contos bons terminam como afogamentos — abruptos e irreversíveis. Que a maioria dos romances tem um capítulo inútil depois da página 130. Que quando um personagem se chama Lucas é provável que seja autobiográfico, e ruim.
Na parede da sua sala, há post-its com frases que salvou de textos rejeitados. “Mordia o pão como quem se vingava da fome.” “A avó dormia com a mão em concha, como se segurasse um segredo.” Frases assim. Isoladas, brilhantes, sem pátria. Ele coleciona como quem tenta provar que valeu a pena ler tanto erro pra encontrar beleza de raspão.
Uma vez, durante um congresso literário, perguntaram a ele o que era mais difícil de ler. Ele respondeu sem pensar: a esperança dos outros. Silêncio na sala. O público achou que era poesia. Mas era só verdade.
Nos cafés onde trabalha, é confundido com contador, diagramador, fiscal. Ninguém imagina que os papéis rabiscados com setas, círculos e frases como “narrador em conflito com ele mesmo?” são obras em potencial. Às vezes lê doze textos num dia. Às vezes um só. Quando lê muito, sonha com palavras embaralhadas. Quando lê pouco, tem medo de esquecer como se faz.
Já foi ghostwriter de dois autores famosos. Escreveu capítulos inteiros sem crédito. Uma vez, recebeu elogios de um crítico que não sabia que o trecho era dele. Quis gritar. Ficou quieto. Essa parte também é o trabalho: engolir o próprio nome.
Ele conhece os bastidores. Sabe quais editoras preferem nomes estrangeiros. Quais não publicam narradores em primeira pessoa. Quais têm aversão a histórias tristes demais. Já tentou brigar. Já enviou textos com recomendações emocionadas. Às vezes funcionava. Às vezes, o silêncio. Uma vez, uma editora devolveu um original com um bilhete: “Texto ótimo, mas não vendável”. Ele ainda tem o bilhete na carteira. Lê de vez em quando, como quem consulta um oráculo cruel.
Há algo de insalubre em viver cercado de literatura em gestação. Como estar num hospital onde ninguém nasce vivo. Mas ele insiste. Tem certeza de que uma frase boa pode salvar o dia. Que um conto perfeito é melhor que férias. Que às vezes um trecho bem escrito redime um autor inteiro.
Um dia, encontrou num sebo um livro que ajudou a recusar anos antes. Estava lá, encalhado, cinco reais. Comprou. Leu de novo. E gostou. Muito. Doeu.
Outra vez, recebeu um e-mail de um autor que ele não lembrava. “Você me recusou, mas sua observação mudou minha escrita. Publiquei.” Ele não respondeu. Não por descaso. Mas porque ficou com vergonha de não lembrar. Às vezes se sente um açougueiro que não reconhece os bois.
A experiência, dizem, é um acúmulo. Ele acha que é um cansaço organizado. Um saber que pesa. Mas também o protege. Hoje ele lê rápido. Sabe quando um texto promete na primeira linha. Quando um título mente. Quando um personagem fala demais. Quando o autor escreve para os pais, e não para o leitor.
É um ofício invisível. Ninguém agradece ao leitor profissional no prefácio. Não há prêmio. Nem aplauso. Mas ele sabe o que faz. Já salvou livros do desastre. Já limpou frases de sua própria vaidade. Já impediu narradores de se matarem cedo demais. Já leu o suficiente para saber que literatura não se escreve: se escuta.
Hoje ele anotou: “A voz do texto é uma febre, não um estilo”. Ninguém vai ler esse bilhete. Talvez use numa carta de recusa. Talvez esqueça. Mas anotou. E isso, no fundo, é o que ele faz. Lê o que ninguém quer ler, para que um dia alguém leia o que vale. Ele é o primeiro leitor de livros que ainda não existem. É o primeiro a chorar, às vezes, quando o texto acerta. É o último a ser lembrado. Mas tudo bem.
A caneta azul acabou hoje. Ele não vai jogar fora.