10 clássicos que você não leu, mas já opinou com confiança em mesa de bar

10 clássicos que você não leu, mas já opinou com confiança em mesa de bar

Nas noites boêmias das metrópoles de todo o planeta, entre goles de cerveja e baforadas de cigarro, observa-se um fenômeno curioso: pessoas discutem acaloradamente sobre obras literárias que nunca leram. É um ritual coletivo, uma encenação em que todos desempenham o mesmo papel, o de experientes críticos literários, ainda que o contato mais próximo com o livro em questão tenha sido um meme no Instagram ou uma citação fora de contexto no finado Twitter. Esse hábito de palpitar sobre clássicos jamais lidos está longe de ser fortuito. Falar mal (ou bem) de autores como Joyce, Dostoiévski ou Kafka tornou-se uma forma de marcar território no mapa da erudição fantasiosa. Mas por que esses livros, que poucos realmente enfrentaram do começo ao fim, instilam tal arrebatamento? Talvez porque, mais do que textos, eles viraram ídolos fetichistas, símbolos de inteligência, requinte ou aversão ao estabelecido — malgrado seu conteúdo siga envolto em densa bruma para 99,9% da humanidade.

Um dos alvos mais frequentes nesse estranho jogo é “Ulisses” (1922), de James Joyce (1882-1941). Trata-se de um dos livros mais herméticos já publicados, uma joia da literatura modernista que exige paciência, atenção e, para muitos, um guia de leitura ao alcance da mão. Raríssimos são os que o leram por completo — e menos ainda os que o compreenderam. Ainda assim, não é difícil escutar alguém, depois de uma e outra talagada, afirmar com segurança que “Joyce era só um irlandinho pedante” ou que “Ulisses” é “o livro mais superestimado de todos os tempos”. O curioso é que essas opiniões costumam vir sem que se saiba sequer o nome do protagonista da obra, o famoso Leopold Bloom, ou o que exatamente pretendia Joyce para além da diegese. Ler dá trabalho; pensar, analisar, refletir sobre o que se leu é cansativo, ao passo que emitir juízos de valor termina por render debates empolgados. 

Thomas Mann (1875-1955) junta-se a Joyce na turma dos ilustres desconhecidos, e “A Montanha Mágica” (1924) é decerto um recordista de elogios e insultos, manifestações que flutuam bem acima do terreno do justo, num caso e no outro. O tijolo metafísico de mais de oitocentas páginas (chegando ao milhar, a depender da editora) em que o alemão mistura filosofia, política, medicina e literatura, ambientado em Berghof, um sanatório nos Alpes suíços, é capaz de inspirar discussões que avançam pela noite com míseras três ou quatro páginas. “Mann previu o século 20”, costuma-se ouvir, embora o sabichão que o declara não tenha a mais pálida ideia acerca do que representam Settembrini e Naphta. “A Montanha Mágica” revestiu-se da aura de talismã, e esse verniz de misticismo não colabora em nada para sua real compreensão. “Ulisses”, “A Montanha Mágica” e outros dez livros constam dessa lista, como clássicos que habitam o inconsciente coletivo e os duvidosos programas noturnos e, também por essa razão, seguem como os amigos da madruga de muitos, aqueles com quem se convive apenas em dadas circunstâncias e a respeito dos quais sabe-se tão pouco — equívoco simples de ser reparado desde que se adotem hábitos novos. Pensando bem, talvez não seja tão fácil, o que só reforça a necessidade da mudança, enquanto o garçom não traz a saideira.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.