Nos últimos anos, poucos nomes na literatura contemporânea alcançaram o status quase messiânico que Colleen Hoover conquistou entre milhões de leitores, sobretudo mulheres jovens ao redor do mundo. Seus livros estão frequentemente no topo das listas de mais vendidos, seus personagens viram obsessão nas redes sociais e suas tramas alimentam grupos de leitura, fanfics e tatuagens com frases emocionais. Para muitos leitores, Hoover não é apenas uma autora — é uma experiência multissensorial, um estilo de vida, quiçá uma religião. Mas por que ela, cujo estilo literário é frequentemente tido por simplório, raso ou até hermético por críticos literários tradicionais, exerce tamanha influência? Como entender essa veneração numa era em que o consumo rápido, a identidade emocional e o TikTok moldam o gosto literário de uma geração? Atentar para sua trajetória, sua estética narrativa (ou, quase sempre, a falta dela), o relacionamento próximo com seu leitor, o papel das redes sociais e as circunstâncias que transformaram seus romances em objetos de desejo e culto é condição fundamental para que se tenha um indício primevo que justifique o êxito avassalador da escritora. E, para o bem ou para o mal, Hoover não há de passar tão logo.
Colleen Hoover começou sua carreira como autora independente em 2012, com a publicação do romance “Métrica”. Seu sucesso inicial foi impulsionado pelo boca a boca virtual e pelas comunidades de leitura na internet, como Goodreads. O estouro veio com “É Assim que Acaba” (2016), um romance que trata de relações abusivas, trauma e superação — temas graves, tratados com uma intensa carga de sentimentalismo. Desde então, a autora emplacou sucessos um atrás do outro e viu seus livros ganharem status de fenômenos de audiência e popularidade instantânea, especialmente por meio da hashtag #BookTok, no TikTok. Suas vendas ultrapassaram dezenas de milhões de cópias, e ela entrou na seleta categoria de autores cujo nome vira grife — ao ponto de muita gente comprar qualquer título dela sem saber do que se trata exatamente. Uma crítica recorrente à obra de Hoover é a sua superficialidade literária. Seus livros têm linguagem acessível, enredos melodramáticos e uma narrativa centrada na experiência emocional, muitas vezes explorando traumas, segredos familiares, amores não correspondidos, abusos e recomeços. Sob o ângulo da crítica literária tradicional, isso pode parecer simplista, repetitivo ou até exploratório. No entanto, é exatamente essa estrutura rudimentar que permite o impacto que seus livros causam. Numa época marcada por ansiedade, crises identitárias e relacionamentos que terminam tão depressa quanto chegam ao fim, os romances de Hoover oferecem uma catarse acessível. No mundo todo, seus leitores não buscam uma linguagem elaborada ou qualquer experimentação estilística: eles buscam identificação, pertencimento e, o principal, consolo.
No Brasil não é diferente. Três em cada dez brasileiros entre quinze e 64 anos não têm o poder de digerir o que encontra nas páginas de um texto qualquer, ou seja, permanecem ignorantes ao debate dos assuntos que teriam o condão de mudar sua história. O espectro do analfabetismo funcional ronda-nos com a mesma insistência desde 2018, e pode ter se agravado com a pandemia de covid-19, na medida em que alijou estudantes pobres dos espaços públicos de letramento. Essa última informação ajuda a explicar por que, entre os vinte livros de ficção mais vendidos entre 28 de abril e 4 de maio de 2025, Colleen Hoover aparece quatro vezes. A autora de “Verity” (2018), “Novembro, 9” (2015), “O Lado Feio do Amor” (2014) e dos fenômenos “É Assim que Começa” (2022) e “É Assim que Acaba” (2016) não é, na verdade, a culpada por seu sucesso. Hoover não teria chegado lá se não fosse um empurrãozinho do tal sistema, que quer-nos todos satisfeitos com nossa estupidez.
Parte do apelo de Hoover vem de sua capacidade de transformar trauma em história. Seus livros quase sempre lidam com personagens que carregam dores profundas — perdas, abusos, abandono, dependência. Em muitos casos, os conflitos são intensificados por viradas dramáticas ou revelações pesadas, algo que muitos críticos literários consideram um tipo de “pornografia emocional”. Entretanto, o que pode parecer exploração do sofrimento para alguns é, para outros, uma forma de validação. O trauma vivido pelos personagens de Hoover ecoa na vida real de muitos leitores, especialmente mulheres que enfrentam situações semelhantes. A representação, ainda que simples, cria um vínculo poderoso. Frases marcantes, capas bonitas e vídeos com reações chorosas ao final dos volumes ajudaram a criar uma mística ao redor de sua, vá lá, obra. O TikTok, com seu algoritmo de personalização, favorece conteúdos altamente emocionais — exatamente a base da escrita de Hoover. Assim, cria-se um ciclo perfeito: o livro emociona, o leitor grava a emoção, o vídeo viraliza, e novos leitores chegam buscando a mesma experiência catártica. Essa lógica do consumo afetivo se alinha à forma como as religiões se espalham: por testemunhos, rituais e comunidade.
O sucesso de Hoover acirra o embate entre literatura de massa e literatura de prestígio. Para muitos críticos, seus livros não possuem inovação narrativa, sofisticação estilística ou profundidade temática que os tornem dignos de reconhecimento. No entanto, esse julgamento carrega também um preconceito de classe e gênero: romances escritos por mulheres para mulheres historicamente foram considerados “menores”. A literatura feminina sempre foi relegada ao segundo plano na crítica tradicional, mesmo quando vendeu milhões.
O caso de Hoover escancara essa tensão: uma autora best-seller, com impacto global, que é rejeitada pelo cânone — mas reverenciada por seu público como uma espécie de santa emocional. Colleen Hoover virou religião não porque escreveu obras-primas, mas porque tocou feridas reais com histórias acessíveis. Sua literatura pode ser considerada rasa por críticos — e, em certos aspectos formais, é mesmo. Mas sua força está na criação de um espaço emocional onde milhões de leitores se sentem vistos, ouvidos e acolhidos. Se a literatura é também um espelho da alma, talvez Hoover entenda melhor do que muitos acadêmicos o que as pessoas estão sentindo hoje. E talvez por isso, para tantos, ela seja mais que uma autora: seja uma espécie de sacerdotisa. E nada mais enganoso que sacerdotes profanos.