Gareth Evans não retorna para confortar. Após sete anos de silêncio, ele reaparece com um filme que não se contenta em retomar sua assinatura estética — preferindo empurrar o espectador para o centro da brutalidade com uma lucidez perturbadora. “Caos e Destruição” não adota a violência como espetáculo, mas como linguagem de um mundo onde o desamparo moral e a promiscuidade entre Estado e crime já deixaram de ser anomalias. O cineasta galês constrói uma narrativa que, em vez de pedir cumplicidade ao público, o desarma: a previsibilidade é sistematicamente frustrada, e a trama parece zombar de qualquer tentativa de antecipação. É nesse caos premeditado que tipos supostamente banais adquirem densidade, deslocando o eixo da ação para a inquietação ética — sempre latente, nunca apaziguada.
Walker é o epicentro desse abalo. Um detetive emocionalmente avariado, cuja urgência não é pela justiça, mas pelo esquecimento. Ele deseja obliterar o passado não por arrependimento, mas porque lembrar exige coragem — e coragem, neste universo, é sempre punitiva. Evans o delineia não como um herói torturado, mas como um sobrevivente mutilado por escolhas que, uma vez feitas, não podem ser renegociadas. Aqui, o tempo não é um eixo que se percorre, mas uma entidade intransigente. Revisitá-lo é inútil, tentar redimi-lo, suicídio. Por isso, “Caos e Destruição” nunca romantiza o retorno ao ponto de origem: insiste que o tempo, em sua tirania silenciosa, é imune aos apelos humanos.
A estrutura narrativa amplifica esse desespero ao operar numa temporalidade disforme, como se o próprio filme se recusasse a obedecer à linearidade. Os marcos de realidade — tempo, espaço, causalidade — são constantemente tensionados. Evans desfigura o presente com fantasmas do passado, e o futuro, quando vislumbrado, é apenas a projeção de ruínas. Neste cenário, o protagonista não se move: é movido. Arrastado por suas falhas e por alianças que o colocam nas margens da legalidade, Walker encarna o paradoxo de um agente da ordem que negocia com o abismo.
O elo com Lawrence Beaumont, político ambicioso e patriarca de um império podre, escancara a simbiose entre poder e violência. Beaumont não quer apenas esconder um segredo: quer redesenhar a realidade para que o crime se confunda com a norma. Seu filho, Charlie — expressão viva dessa ambição depravada — conduz a ação com uma ferocidade ensandecida, cuja brutalidade quase se transforma em método. É nessa vertigem que surge Mia, mulher sem vestígios de redenção possível, cujo olhar cansado e obstinado revela que, entre o certo e o necessário, ela já fez sua escolha há muito tempo. Quelin Sepúlveda a interpreta com a fúria fria de quem sabe que nenhuma revolução virá salvá-la.
Evans evita o frenesi estilizado: mesmo nos massacres mais intensos, há uma contenção sinistra, como se o sangue não estivesse ali para impressionar, mas para lembrar que cada ato tem um custo irrevogável. É nesse ponto que Tom Hardy e Forest Whitaker entram, não como messias da virada narrativa, mas como corpos experimentados na arte de resistir. Suas performances não procuram a glória, mas o peso. São homens que conhecem o valor da perda e a inoperância da justiça diante da barbárie — e que, ainda assim, insistem em agir.
Não há redenção, mas talvez um deslocamento. A pergunta que o filme lança — e deixa em suspenso — não é sobre o que fazer com o passado, mas se é possível continuar caminhando mesmo quando o presente é apenas um campo de escombros. “Caos e Destruição” não conclui: reverbera. Como uma ferida aberta que se recusa a cicatrizar, e que exige do espectador não empatia, mas escuta. Uma escuta atenta ao ruído persistente daquilo que não pode mais ser ignorado.
★★★★★★★★★★