A liberdade, embora proclamada como bem supremo, torna-se frágil diante de engrenagens sociais que operam à revelia da justiça. É possível que apenas quando se perde essa liberdade — não metaforicamente, mas no sentido mais literal e angustiante — se compreenda o peso que ela carrega. E, muitas vezes, esse fardo é intensificado por estruturas invisíveis que conspiram com a precisão de um relógio contra aqueles que, por não corresponderem às expectativas de conduta, se tornam vulneráveis ao sistema que jurava protegê-los. Nesse cenário, advogados não são apenas figuras de toga, mas intérpretes do abismo entre a legalidade e a moral, entre o que se pode argumentar diante de um juiz e o que se pode suportar diante da própria consciência.
O labirinto que se abre após o impacto de uma acusação, ou mesmo de uma dúvida pública, não é terreno que se percorre ileso. Quando a honra de um indivíduo é rompida por suspeitas ou erros irreversíveis, não resta apenas a tarefa de recompor a imagem social: há também o desafio interno de não se permitir apodrecer por dentro. Muitos, diante desse abismo, escolhem atalhos duvidosos e atitudes que aprofundam ainda mais sua desconexão com o que antes chamavam de dignidade. A liberdade, nesse contexto, transforma-se em uma espécie de moeda flutuante, cujo valor varia conforme os olhos que a observam. E quando o senso de justiça é corrompido por ressentimento, negligência ou sede de autopreservação, torna-se necessário um poder superior — não necessariamente mais justo, mas mais eficiente — para restabelecer o equilíbrio que foi dinamitado.
Roman J. Israel, protagonista do longa de Dan Gilroy, não compartilha do tipo de simpatia que normalmente se espera de quem atua em nome da justiça. Ele não se encaixa na moldura do homem afável, nem carrega o verniz do idealista carismático. Seu universo é solitário, quase ascético, construído em torno de princípios irredutíveis que frequentemente o colocam em rota de colisão com o mundo à sua volta. Em tempos de cinismo institucionalizado, sua recusa em negociar valores torna-se não virtude, mas obstáculo. Israel opera no campo da advocacia criminal com uma obstinação que beira o autismo social — ele fala demais, escuta de menos e age por convicção quase religiosa, como se o tribunal fosse um púlpito e o réu, um símbolo daquilo que precisa ser salvo.
É Denzel Washington quem empresta densidade a essa figura de contornos dissonantes, trazendo à tona tanto o estoicismo quanto a fragilidade de alguém que viveu décadas na sombra dos holofotes, batalhando por réus ignorados pelo sistema. Seu personagem ecoa figuras trágicas da literatura: homens que acreditam, até o fim, na supremacia do certo sobre o conveniente. A reviravolta, contudo, não se dá apenas na esfera moral. Quando o escritório onde Israel dedicou sua vida fecha as portas, ele é absorvido por um novo mundo corporativo que personifica tudo o que antes combatera — eficiência sem empatia, lucro acima de qualquer reparação social. Colin Farrell, como George Pierce, atua como contraponto pragmático, um elo com a realidade de quem joga o jogo do poder com regras claras, mas intenções ambíguas.
O confronto que se desenha entre Israel e o novo contexto profissional não é imediato, mas corrosivo. É como se o personagem fosse lentamente empurrado para uma zona de exceção, onde seus próprios princípios passam a operar contra ele. Quando finalmente se vê diante de uma encruzilhada ética — que envolve dinheiro, silêncio e autopreservação —, o gesto que executa é ao mesmo tempo irracional e fiel à sua lógica interior. Gilroy constrói essa transição com precisão quase matemática, pontuando o roteiro com referências ao papel histórico do Direito na contenção do caos civilizatório, mas sem nunca ceder ao didatismo. O que está em jogo ali não é apenas a moral de um homem, mas a capacidade que ele tem de permanecer inteiro num mundo que exige fissuras como condição de sobrevivência.
“Roman J. Israel, Esq.” não se redime, tampouco se corrompe de maneira simplista. Seu percurso finaliza em terreno instável, mas coerente. O que se impõe é a figura de um homem que, mesmo tragado por suas próprias falhas e contradições, recusou-se a trair a si mesmo. Em um tempo em que concessões éticas são vendidas como maturidade, sua rigidez pode soar como relíquia, mas é justamente aí que reside sua relevância: na lembrança incômoda de que há pessoas que não se adaptam porque não desejam sobreviver a qualquer custo.
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