A alma de cada homem é como um rio, em que correm mistérios de diferentes gradações. Os mais inofensivos, que remetem a segredos que todos ao seu redor já conhecem, se agrupam num bloco maciço e coeso, e flutuam na superfície, escondendo os segredos realmente dignos da curiosidade, da admiração e do escândalo das outras pessoas, que, naturalmente têm seus próprios monstros e tesouros a manter a salvo do apetite alheio. Vive bem no fundo de cada um de nós uma criatura feita a nossa imagem e semelhança, que quase não conhecemos e contra a qual podemos muito pouco, desafiando-nos com suas provocações — uma ideia que pulsa em “Casa de Areia”. Andrucha Waddington pinta um quadro à Edvard Munch (1863-1944), mas destacando, ao contrário do norueguês, a luz que segue existindo nas trevas. Juntamente com os corroteiristas, o também produtor Luiz Carlos Barreto e Elena Soarez, Waddington urde uma trama sofisticada a respeito de tristezas de campos os mais diversos, que materializam-se num cenário estranho e magnético.
Os personagens de “Casa de Areia” têm a solidão por porto seguro. A vontade atávica, ancestral e instintiva do isolamento e da fuga alcançam as raias da obsessão, ignorando dores que continuam a latejar mesmo depois que o caos da vida arrefece e eles são surpreendidos pelo torpor do cansaço e a bênção do sono, reavivando as cinzas de um passado que teima não passar nunca, sem a promessa do alívio. Maria e Áurea ocupam esse lugar, que a vastidão dos Lençóis Maranhenses torna mais bucólico e infernal, talvez esperando que o céu caia sobre elas de uma vez por todas.
Waddington volta algumas décadas a fim de capturar o momento exato em que Áurea e o marido, o português Vasco de Sá, instalam-se naquela aldeia fantasma, enquanto o restante da caravana morre ou acha um pretexto para seguir em frente. Essa é uma história de mulheres, e Fernanda Montenegro e Fernanda Torres revezam-se nos papéis de Maria e Áurea, na velha brincadeira metalinguística que vêm fazendo ao longo da carreira. Torres é a Maria de quarenta e poucos anos, ao passo que Montenegro torna-se a Áurea vetusta e já calejada, mas que ainda tem forças para sonhar com uma outra vida.
As elipses de Waddington surtem o efeito de hipnose, que a fotografia de Ricardo Della Rosa (1968-2015) realça ao sempre destacar o areal indômito que engole as choupanas, também devoradas pelo sol matador que fustiga as duas protagonistas. O elenco de peso ancorado por Stênio Garcia e Emiliano Queiroz (1936-2024) e participações cheias de afeto como as do músico Luiz Melodia (1951-2017) e a do cineasta Ruy Guerra na pele de Vasco acabam por perder-se num conto sobre a autodestruição de duas almas que só têm uma a outra e que endureceram a tal ponto que não são mais capazes de suportar um terceiro elemento em suas jornadas. Por mais que elas neguem.
★★★★★★★★★★