Depois de certa idade, pulsa na carne de toda mulher e de todo o homem a certeza de que a vida é de fato um mistério, e circunstâncias inexplicáveis — e não raro sinistras — sempre hão de sobrepujar a jornada de cada um em determinado momento, numa frequência insana que o organismo só tolera porque amalgama essa substância incorpórea que absorvemos do mundo ao caos que tem em si por natureza, vindo sabe Deus de que universo paralelo a este, onde é tudo breu, silêncio e harmonia.
A dada altura da vida, o existir parece imerso num caldo untuoso que interdita-nos qualquer movimento, dando a sensação de que a realidade deu lugar a uma condição muito específica, como se um sonho, longo, fadigoso, que drena as energias de quem dorme e tenta, em vão, forjar aquelas imagens a seu talante. Ao notar, finalmente, que está encarcerado a memórias de que deveria livrar-se — malgrado jamais possa —; de que sua história até ali, em maior ou menor grau, há de manifestar alguma influência sobre os rumos que toma agora; de que está a reboque dos desmandos de seu próprio pensamento, no labirinto nebuloso de sua cabeça tão instável, cabe ao homem apenas convencer-se de que viver é mesmo a cornucópia de delírios que lhe parecia desde tenra idade. E fazer doce o naufragar-se nesses mares, como aconselha o poeta italiano Giacomo Leopardi (1798-1837).
Com alguma assiduidade, somos desafiados a encontrar motivos para ratificar nossa crença no existir, passando por cima de todo o desalento que embrutece e paralisa; de toda a melancolia, que na dose imprópria, deixa nebuloso o céu da reflexão e avança ao pântano da dúvida imanente e ubíqua, acerca de qualquer um e em qualquer parte; de tudo quanto tenta nos demover do sonho de dias menos sombrios e gente mais risonha, o ideal mais singelo e mais intricado a que se pode aspirar. Num só movimento, viver torna-se uma sucessão de luzes e sombras que se atraem e se repelem e se equivalem, subidas e descidas bruscas e repentinas como num brinquedo macabro, entradas e saídas de labirintos claustrofóbicos que se estreitam ainda mais conforme tomamos pé de nossas humanas limitações, agudizando a impressão de que no espírito do homem cabem mesmo todos os sonhos do mundo, mas nele encrustam-se igualmente muitas das côdeas que enxovalham o mundo para muito além da vã filosofia deste plano tão rasteiro.
O que não tem explicação, o que não tem nome, muito do que a razão não alcança, pauta a narrativa dos sete filmes que compõem a lista abaixo, protagonizados por homens que, bem ou mal, encarnam o arquétipo do salvador americano, e, por evidente, tomam forma naquelas terras encravadas em planícies entre montanhas a perder de vista, longe do mar e do céu e banhadas por um dourado que, por si só, já nos recompensa. Cada um dos sete filmes desta lista contém, cada qual a seu modo, a mensagem tão enigmática quanto assertiva de resiliência, busca por evolução, alento em gestos simples, em personagens que, em uma ou outra circunstância, nem sempre conseguem escapar a algum revés.
Em “Mickey 17” (2025), Bong Joon-ho continua a se provar um dos cineastas mais criativos e sofisticados da indústria mundial ao narrar a história de um infeliz que talvez passe a eternidade nascendo e morrendo só para livrar multimilionários de vírus e outras ameaças num novo planeta. Já com “A Última Showgirl”, Gia Coppola pretende fazer uma justa homenagem a Pamela Anderson, que, ao encarnar uma vedete em fim de carreira, volta a lances feéricos e lúgubres de sua própria vida diante dos holofotes, que fizeram-na uma estrela mediante renúncias e humilhações silenciosas. Excelentes pedidas para o feriado ou a qualquer tempo.

Bong Joon-ho é um homem ousado. Poucos cineastas sabem como dizer verdades incômodas e fomentar discussões cada vez mais urgentes como o sul-coreano, que, merecidamente, adicionou ao currículo láureas a exemplo do Oscar de Melhor Filme por “Parasita” (2019), o primeiro longa de língua estrangeira a vencer nessa categoria, agraciado também com a Palma de Ouro de Cannes — e fazia cerca de setenta anos que uma mesma produção não conquistava os dois prêmios máximos mais importantes do cinema. Se “Parasita” abriu os olhos do mundo para o que tem feito a indústria cinematográfica da Coreia do Sul, “Mickey 17” entra na equação como um catalisador dos novos desejos do público e do pensamento refinado do diretor, que nunca se furtou a tocar nas chagas expostas da humanidade desde muito antes da fama. “Mickey 17” parece, aliás, uma fusão de “Parasita” com “Expresso do Amanhã” (2013), uma história sobre ultrarricos que bancam o fomento de pesquisas sobre a colonização de um outro mundo, no qual pobres são mais que desassistidos: são a escória que serve apenas para ser explorada em propósitos os mais excludentes e abjetos.

“O Brutalista” entra com todo o merecimento na galeria de épicos do cinema, e é preciso fôlego extra para chegar ao fim dos 215 minutos de uma história cheia de reviravoltas, detalhes, proposições, beleza, mas uma beleza que repudia a obviedade e impõe-se pelo vigor. Brady Corbet e a corroteirista Mona Fastvold tecem críticas ora pertinentes, ora ingênuas ao capitalismo tendo por pano de fundo a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que expulsa um homem de sua terra natal e o força a sair à procura um novo lugar para chamar de seu, pouco importa onde, sem nenhuma garantia de que o iria encontrar. Esse homem, László Tóth, vai parar, claro, nos Estados Unidos, mais precisamente em Nova York, e a partir então o filme ganha cores, movimento, estrutura, dançando conforme a estranha música que o compositor Daniel Blumberg cria para ele.

De quando em quando, os semideuses se cansam do Olimpo de onde observam o resto da pedestre humanidade e resolvem dar uma volta aqui embaixo, experimentando os prazeres e as dores dos simples mortais, sofrendo como eles, encontrando aí, talvez, outra natureza de glória. Dizer que Pamela Anderson se desnuda ao longo dos 85 minutos de “A Última Showgirl” pode parecer uma blague um tanto grosseira (além de óbvia), mas é justamente essa a impressão que quis dar Anderson, um dos símbolos sexuais mais perenes da história do mundo do espetáculo, uma mulher que viveu do seu corpo, mas que sempre soube deixar claro quem mandava em quem. Há em Shelly Gardner alguma coisa da eterna C.J. Parker, a salva-vidas que açulava a imaginação de marmanjos de todo o planeta em “S.O.S. Malibu” (1989-2001), a série idealizada por Michael Berk, mormente os de uma América puritana e hipócrita, mas não tudo, e para quem quiser conhecê-la mesmo, recomendo com veemência “Pamela Anderson — Uma História de Amor” (2023), o ótimo documentário de Ryan White. Gia Coppola tira de sua protagonista a aura de transgressão — com que teve lucros e prejuízos no mesmo grau, obrigada a safar-se das investidas de cafajestes que, rejeitados, empenharam-se diligentemente (e num silêncio covarde) para eclipsar sua ascensão, o que, de fato, acabou acontecendo — e chega à essência de uma artista acossada por um inimigo que ninguém vence.

Alejandro González Iñárritu parece continuar firme em seu propósito de não mais tolerar as delicadezas cínicas que sustentam o mundo. Em “Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades”, Iñárritu personifica muitas das neuroses não apenas do gênero humano mas das Américas, da história do continente americano, da glória e do desajuste de ser artista numa era de violências perpetradas das mais diversas maneiras, das mensagens que condenam, das palavras que matam. El Negro, como é conhecido em Hollywood, já conta cinco Oscars no currículo e este seu trabalho mais recente — pleno de toda a originalidade e de todos os maneirismos pelos quais a Academia costuma se enamorar — parece que vai juntar-se aos outros homenzinhos dourados do mexicano. Com seu 13° filme, o diretor inclina-se a escancarar um pouco mais seu choque frente à ignorância maciça que rege nossos dias, espraiada pelos campos mais insólitos e mais urgentes.

Em “Glass Onion: Um Mistério Knives Out”, segundo filme de uma trama que tem muita lenha para queimar, Rian Johnson mantém a linha de um suspense bem elaborado, abrindo o horizonte dramático dos tipos que apresenta, ricaços entediados que se dedicam a joguinhos tolos, mas perigosos, para esquecer sua irrelevância. Aludindo a uma canção dos Beatles, o roteiro de Johnson ilumina as muitas camadas aparentemente translúcidas das relações humanas, hábeis em filtrar toda a luz que lhes possa atravessar e vertê-la numa energia pouco benfazeja. Como não poderia deixar de ser, o diretor segue reverenciando — de um modo bastante original, que se diga — Agatha Christie (1890-1976), sem prejuízo dos trechos cômicos que se prestam a um tempero bem dosado para uma narrativa saborosa, estilo de que a Dama do Crime decerto não se ressentiria.

Para os personagens de “Hereditário”, as humanas misérias ressoam como sinos de uma estranha catedral perdida no deserto, reverberando aquele barulho aos confins do mundo na lembrança da danação eterna. Ari Aster faz de seu filme uma espécie de caldeirão em que despeja a pletora de velhas mágoas e tantos outros sentimentos malditos que azucrinam uma família, fervendo-os sem pressa até que desse caldo emerja a substância com a qual elabora um trama de marcada pelo rancor. Antes, todavia, o diretor empenha-se no jogo de gato e rato que atravessa tres gerações, e com o que vai se formando desse processo constrói uma história pungente, que segue doendo mesmo depois de vencidas as mais de duas horas de projeção, transcorridas num andamento entre ágil e reflexivo, mas nunca arrastado. Tudo parte de uma acertada estratégia quanto a mesmerizar a audiência, incrementar o suspense e fazê-lo metamorfosear-se num terror psicológico que ultrapassa a tensão e molesta também a disposição física de quem ousa assistir até o final.

Quase sempre, a relação entre pais e filhos é, cheia de idas e vindas, altos e baixos, situações em que a parte mais velha desaconselha muitas das atitudes que definem e justificam a existência de quem responde pelo lado mais novo. Esse hiato não só de anos como de intenções entre duas pessoas que se querem bem, mas que optaram por estilos de vida rigorosamente diversos, mesmo antagônicos, vai apontando para desdobramentos muitas vezes dramáticos de questões que passariam por banais aos olhos insensíveis de um grupo social, e é nessa cadência que marcha “O Retorno de John Henry”, um faroeste pleno de revelações e inconfidências, autorizadas ou não, sobre o tempo, conceito eminentemente subjetivo. Observada a medida exata das coisas, Donald e Kiefer Sutherland se valem do que viveram juntos para dar a “O Retorno de John Henry”, o faroeste que o canadense Jon Cassar rodou em 2015, o verniz de facticidade que é a essência mesma da história, e não faria sentido algum reunir um pai e um filho para além da ficção sem querer extrair dessa particularidade algum ponto que fosse contar a favor da trama.