O filme que foi ignorado no Brasil… mas fez plateias chorarem em Cannes Divulgação / Vitrine Filmes

O filme que foi ignorado no Brasil… mas fez plateias chorarem em Cannes

Num Rio de Janeiro onde o calor parece suar pelos próprios prédios e a moral escorre pelas paredes das casas, duas mulheres coexistem separadas não apenas pelo espaço, mas por um projeto deliberado de silenciamento. Não é a fatalidade que as distancia, tampouco um acidente do destino: é uma engenharia social que confina desejos, sonhos e afetos femininos às margens da visibilidade. Em “A Vida Invisível”, Karim Aïnouz ergue, com precisão quase cirúrgica, o retrato de duas irmãs atravessadas pela violência mansa de uma cultura que, sem estridência, constrói seus muros dentro das próprias famílias.

Guida, ao se lançar à paixão, abandona as amarras impostas, mas é devolvida ao núcleo familiar como uma pária — a gravidez fora do casamento sela seu banimento. Eurídice, a irmã que fica, não é poupada: sua permanência a condena a uma vida progressivamente comprimida pelas expectativas alheias, um esvaziamento que avança em silêncio. Não há, aqui, a promessa de reencontro fácil ou de reconstrução dos laços: o que permanece é a lacuna, o espaço entre o que poderia ter sido e aquilo que o sistema tolera. Cada escolha arrancada, cada segredo imposto, desenha o contorno de uma ordem que se empenha em dissolver toda autonomia feminina.

O Rio dos anos 1950 pulsa menos como cenário e mais como mecanismo ativo de controle. A beleza saturada das imagens, longe de oferecer alívio, acentua a claustrofobia moral: quanto mais vibrantes as cores, mais sufocante o ar. A fotografia e o desenho sonoro conspiram para aprisionar o espectador na mesma atmosfera que embosca as personagens. Não se trata apenas de um retrato estético: é uma imersão sensorial na lógica que reduz vidas à sombra, sentimentos à obrigação e sonhos à resignação.

A violência que atravessa essa história não é espetacularizada. Ela se materializa em gestos triviais, nas pequenas traições quotidianas que, isoladas, poderiam parecer inofensivas. A brutalidade não se impõe com estardalhaço, mas se insinua como uma doença crônica: está na maneira como se corrige, como se aconselha, como se exige amor e submissão no mesmo movimento. A força do filme reside exatamente na recusa a teatralizar essas feridas. Em vez disso, opta por uma dissecação lenta, paciente, da maquinaria cotidiana que naturaliza o apagamento.

Eurídice, sufocada sob a armadura dourada do casamento, carrega o peso das promessas abortadas — não uma simples mulher frustrada, mas a corporificação de talentos amputados pela conveniência social. Guida, expulsa e renegada, esculpe no próprio abandono uma nova identidade, precária mas insubmissa. Não há heroísmo ruidoso em suas trajetórias; há resistência por obstinação, um embate miúdo, incessante, contra o destino que lhes fora moldado sem consulta. São figuras de rebeldia subterrânea, testemunhas de uma persistência que incomoda justamente porque se recusa a morrer.

A recusa à redenção fácil é o gesto mais radical de Aïnouz. Quando o reencontro entre as irmãs finalmente ocorre, ele já não pertence mais ao território do possível: é um eco, uma memória sonhada, uma lembrança do que foi usurpado. Não há promessa de reparação, apenas a constatação de uma perda irreversível. A dignidade do desfecho repousa exatamente nessa aceitação dolorosa: a de que certas violências não se curam, apenas se reconhecem — e que essa consciência, embora tardia, ainda carrega potência transformadora.

Ao adaptar o romance de Martha Batalha, o diretor realiza mais do que uma transposição narrativa: transforma a história num artefato de escavação crítica. Não há demonizações caricatas, tampouco vilões unidimensionais. O patriarcado aqui é um corpo múltiplo, feito de gestos que se pretendem protetores, de afetos que anulam, de práticas que se repetem pela boca dos bem-intencionados. É um sistema entranhado, reproduzido por homens e mulheres que perpetuam, muitas vezes sem perceber, a lógica que asfixia.

O filme não fecha sobre si mesmo. Deixa em aberto uma pergunta incômoda: quantas existências femininas ainda são rasuradas sob a superfície polida da normalidade? A inquietação que o filme provoca não é um efeito de época; ela atravessa gerações e se infiltra no presente, disfarçada de novas convenções. Apesar da roupagem histórica, a narrativa respira contemporaneidade: suas feridas seguem abertas, ainda que muitas vezes recobertas por vernizes mais sofisticados.

“A Vida Invisível” transforma a ausência em corpo, o silêncio em clamor invisível. Cada intervalo entre palavras, cada gesto abortado, cada carta que não chega, grita mais alto do que discursos inflamados jamais poderiam. Não é consolo o que a obra oferece: é desconforto. É o chamado incômodo para enxergar o que se preferiria esquecer — e reconhecer que, em tempos e formas distintas, o projeto de silenciar mulheres persiste, travestido de afeto, de cuidado, de ordem.

Ver, nesse contexto, já é subversão. Permitir que essas histórias se imponham à memória coletiva, resistindo ao apagamento, é um primeiro passo — pequeno, mas inegavelmente político — na difícil tarefa de quebrar os ciclos da invisibilidade.

Filme: A Vida Invisível
Diretor: Karim Aïnouz
Ano: 2019
Gênero: Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★