Há quem vá ao teatro como se fosse a um velório doméstico. Tudo limpo, sutil, correto. A luz baixa, os figurinos bem passados, as palavras ditas com precisão que parece quase médica. E há, ainda, quem deseje, quem implore, por um teatro que seja o contrário disso. Não um reflexo da realidade, mas sua ruptura. Uma experiência onde o espectador não seja cúmplice passivo de uma encenação elegante, mas corpo vulnerável diante de uma cena que não respeita os limites da convenção. Antonin Artaud não escrevia para ser entendido. Escrevia para que o corpo tremesse. Para que os olhos, diante do palco, se recusassem a piscar.
Ele sabia. Sabia que havia algo de podre na forma como o Ocidente organizou sua sensibilidade. A cultura, domesticada, passou a ter como ideal o equilíbrio, a clareza, a racionalidade. Como se a razão fosse suficiente para dar conta do abismo que pulsa por baixo das palavras. Artaud, com seus ossos frágeis e sua alma em combustão, gritava contra isso. Seu teatro da crueldade não é sobre sadismo, nem sobre horror gratuito. É sobre a necessidade desesperada de rasgar o verniz do discurso e atingir os nervos. Ali onde a linguagem falha, onde o pensamento hesita, onde tudo dói. E por isso é real.
Ele compreendia o corpo como território de revelação. Um corpo que se contorce, que sua, que tropeça no próprio gesto. A cena, para Artaud, era o espaço de uma cerimônia quase xamânica. Uma zona de contágio. Nele, o ator não representa: encarna. Não ilustra: queima. Cada movimento é uma implosão interna. Cada ruído, uma ferida aberta no tempo. O texto, se ainda existe, é matéria secundária. Palavra escrita no ar com sangue, saliva, respiração. O verbo que treme antes de virar fala. Porque, no fundo, ele sabia que a linguagem foi sequestrada por um conforto que mata. E queria devolvê-la à sua fúria original.
A crueldade, para Artaud, era clareza extrema. Era ver sem o filtro da moral, da lógica, da etiqueta. Não uma violência contra o outro, mas contra a ilusão. A ilusão de que compreendemos o mundo. A ilusão de que o sofrimento pode ser narrado sem ser sentido. Ele queria o incômodo. O grito do espectador que se recusa a permanecer sentado. O desconcerto que não se resolve com aplausos. E esse desejo, tão inaceitável à época quanto ainda é hoje, é também uma forma de ética. Porque há momentos em que só o choque nos salva. Só o impacto acorda.
Artaud escreveu com o corpo em colapso. Com a mente em vertigem. Foi internado, humilhado, silenciado. Ainda assim, sua voz arde. Porque há verdade no delírio quando ele se recusa a mentir. Há beleza no feio que recusa a máscara. Em tempos como os nossos, em que a arte muitas vezes parece ter se rendido à distração, ao comentário esperto, à ilustração de ideias, Artaud continua sendo um escândalo necessário. Ele nos lembra que há outra via. Uma via sem garantias. Onde o artista não explica, mas se arrisca. Onde o público não aprende, mas se perde. E talvez — quem sabe — se reencontre no meio do incêndio.
Não é confortável. Nunca foi. Um teatro assim não oferece respostas, nem simpatia. Ele arranca a pele da expectativa e esfrega o real na carne viva do presente. Não se trata de compreender, mas de suportar. De atravessar. De sair diferente. Um teatro que não se esgota na cena, mas permanece nos ossos, nos sonhos, nos silêncios posteriores. Que persegue. Que suja. Que exige algo em troca: a renúncia à passividade.
É possível, ainda, esse teatro? Num mundo onde tudo tende à suavização, à polidez de superfície, há espaço para o abismo? Talvez não como antes. Mas talvez de outro modo. Talvez o teatro da crueldade hoje não precise da violência literal, mas do gesto que desobedece. Do texto que hesita. Da presença que perturba. Do ator que fere com o olhar. Da encenação que se recusa a fechar o sentido. Porque há uma ternura secreta em quem escolhe, mesmo sem garantias, ferir para fazer ver. Ferir, não por prazer, mas porque a lucidez, às vezes, sangra.