Obra-prima ganhadora da Palma de Ouro, um dos filmes mais comentados de 2024 está no Prime Video Divulgação / Diamond Films

Obra-prima ganhadora da Palma de Ouro, um dos filmes mais comentados de 2024 está no Prime Video

Em “Anatomia de uma Queda”, um corpo despenca, mas antes disso, um casamento já estava se arrastando rumo ao colapso inevitável. Justine Triet opta pelo recurso mais acessível para explorar as limitações inevitáveis de uma relação, descendo cada vez mais fundo até alcançar a origem de toda aquela destruição. O roteiro impecável de Triet e Arthur Harari se apoia inteiramente na atuação intensa, nebulosa, porém clara e direta de Sandra Hüller, potencial nova vencedora do Oscar de Melhor Atriz — o filme também está indicado aos prêmios de Melhor Filme, Direção, Roteiro Original e Montagem, este último para Laurent Sénéchal —, cuja presença diminui gradualmente, permitindo que outros dois protagonistas brilhem, embora com menor intensidade.

Nada óbvio, inesperado e muito filosófico, como convém a uma produção francesa, “Anatomia de uma Queda” faz jus à Palma de Ouro do Festival de Cannes, não apenas por sua frieza calculada, que derrete no momento certo. É uma análise quase impassível sobre o porquê do fracasso de certos relacionamentos, que, muito antes do golpe final, sempre dão uma pista de que podem atravessar a última fronteira. Sandra Voyter, uma escritora, dá uma entrevista na sala de seu chalé próximo a Grenoble, nos Alpes franceses, enquanto Samuel, seu marido, um professor que também aspirava a uma carreira literária, se distrai no sótão, tocando uma versão instrumental de “P.I.M.P.” (2003), de 50 Cent.

Samuel parece mesmo um parasita, vivendo às custas da esposa, explorando não só seu corpo, mas principalmente seu espírito, como veremos a seguir. A edição fluida de Sénéchal permite que o público acompanhe de perto as reações de Sandra e de Zoé Solidor, a estudante de mestrado que lhe faz perguntas enfadonhas, insignificantes, até que a anfitriã começa a virar o jogo. Escrever é uma atividade solitária, egocêntrica de várias maneiras, às vezes cruel por exigir tanto e oferecer tão pouco em troca. Agora que Sandra tem a chance de receber algum feedback de alguém de fora, sem nenhuma obrigação com ela, ela não se perdoaria se deixasse passar a oportunidade de sair da bolha, mas talvez não seja apenas isso. Triet começa a insinuar um possível flerte entre as duas mulheres, e Camille Rutherford, em admirável sintonia com Hüller, nutre essa impressão e esse desejo do público. Mas há um cheiro de tragédia vindo do andar de cima.

A música não diminui e se torna tão alta que Sandra decide encerrar a conversa com Zoé. A câmera corta para Daniel, o filho do casal, saindo para levar Snoop, o border collie da família, para uma caminhada, o que sempre acontece quando o garoto intui que os pais estão prestes a discutir. No terceiro ato, uma cena mostra Sandra indo até o quarto onde estava Samuel, vivido por Samuel Theis, para confrontá-lo. A diretora e seu corroteirista mantêm a mística de seu trabalho ao dar aos protagonistas os nomes dos próprios atores, e quando Daniel, interpretado por Milo Machado Graner, resolve voltar para casa, vê o pai caído na neve, cercado por uma grande poça de sangue.

“Anatomia de uma Queda” gira pelas próximas duas horas e meia em torno das misteriosas circunstâncias em que Samuel foi encontrado. Cada um desenvolve teorias diversas que tentam explicar, ou obscurecer ainda mais, o que pode ter sido um acidente, um crime, ou a consequência de um crime, além de considerar a hipótese de um momento de loucura do próprio falecido. Samuel pode ter escorregado; alguém pode ter investido contra ele, provocando a queda; ou ele pode ter sido ferido mortalmente antes de cair, embora o suicídio nunca deixe de ser uma hipótese viável — Triet destaca o entendimento peculiar dos franceses sobre a ideia e o ato de tirar a própria vida em uma cena que captura uma das intermináveis e exaustivas audiências que precedem o veredito.

Quando a ação se desloca para o tribunal, uma gravação de áudio revela o que parece ter sido o início da briga, um recurso genial usado pela diretora para deixar ainda mais clara a distância entre Sandra e Samuel, dando também a Theis a oportunidade de mostrar a profundidade de seu papel. No tribunal, fica claro que o falecido tinha o hábito de registrar os desentendimentos do casal, com a concordância dela, que logo esquece desse costume do marido. Contra Sandra pesa também a “acusação” de ser bissexual, sugerindo que poderia estar apaixonada por Zoé e decidiu resolver sua situação de uma vez por todas, por impulso ou premeditação. Teorias conspiratórias as mais delirantes permeiam o julgamento — e o juízo que o público faz da personagem de Hüller, segura na pele da escritora de sucesso agora estigmatizada como uma viúva negra que acaba com o parceiro de forma brutal. A sequência final, com Sandra e Snoop exaustos perto da janela implacável, nos dá uma única certeza: ninguém conhece ninguém. E, talvez, ninguém goste de ninguém — só os cães, que não nos conhecem como realmente somos.


Filme: Anatomia de uma Queda
Direção: Justine Triet
Ano: 2023
Gêneros: Suspense/Crime/Drama
Nota: 10