Poucos diretores captam a essência oculta e miserável das relações como Lukas Dhont. Em “Girl” (2022), baseado na história real da bailarina Nora Monsecour, o belga tira os véus mais pesados de um assunto espinhoso, que deveria provocar um debate sério e ponderado, mas segue escandalizando e deixando um rastro de inexplicáveis rancores. “Close” vai pelo mesmo caminho, mas aqui tudo é bem sutil, o que acaba chocando muito mais, dada a violência do último efeito de tacanheza, ignorância, covardia e despreparo quando se lida com a natureza menos palpável de alguém.
O roteiro de Dhont e Angelo Tijssens, seu colaborador habitual, cerca-se de todos os cuidados para garantir que ninguém se surpreenda com o que acontece com os protagonistas, embora jamais deixe de pairar a suspeita de que não há chance de final ditoso ao cabo das sequências em que insinua algo de muito nefasto contaminando a amizade de dois garotos que também se deparam com sua própria maldade. Elementos como a fotografia de Frank van den Eeden, definida pelo emprego diligente da luz natural, são o que fazem da trama um registro incômodo das zonas escuras do espírito humano, contradição que qualquer um minimamente lúcido pode reconhecer em si mesmo.
A amizade de Léo e Rémi parece maior que a vida. Os dois cresceram numa comunidade de pequenos produtores rurais no interior da Bélgica, frequentando a casa um do outro desde sempre, o que até causa um mal-entendido inicial que Dhont não dissipa de pronto. Num dos segmentos mais esteticamente inspirados da história do cinema, os dois correm por uma plantação de flores banhados pelo sol da manhã, o que deixa nas entrelinhas o relacionamento amoroso que vira o eixo narrativo em torno do qual tudo se move, encarado de sob ângulos incompatíveis.
Há quem considere um absurdo que os pais das crianças percebam nesse comportamento e não digam nada, e até estimulem essa intimidade, ao passo que outros consideram delirante e mesmo abjeta a mera possibilidade de se imaginar a paixão cada vez menos reprimida de dois garotos que se descobrem e descobrem o mundo, processo que nunca se dá sem traumas e rupturas. Essa é uma boa pista para que se compreenda o que toma corpo no segundo ato, momento em que um dos meninos enxerga afinal de que modo os colegas da nova escola os estão vendo. E essa nova revelação o transtorna.
Léo decide pelo afastamento, renunciando ao prazer de escutar os solos de clarinete do amigo nos ensaios para o recital da escola e até aos passeios pelos campos coloridos pelas flores. Desse ponto adiante, Eden Dambrine encarna a metamorfose de seu personagem e do próprio filme com uma noção assombrosa do que vive aquele garoto obsesso que só queria ser igual aos outros e tem de lidar com essa impossibilidade. Gustav de Waele, por seu turno, vaise revestindoda angústia de Rémi aos poucos, até que o espectador admita a hipótese de que algo de verdadeiramente trágico venha coroar o inferno dos dois. Na iminência da conclusão, Dhont põe juntos Léo e Sophie, a mãe de Rémi interpretada com energia e sofisticação por Émilie Dequenne, num acerto de contas que poderia degringolar em outro infortúnio, mas, sabiamente, “Close”, mais uma vez, opta pela brandura.
Filme: Close
Direção: Lukas Dhont
Ano: 2022
Gênero: Drama/Coming-of-age
Nota: 9/10