Baseado em best-seller do New York Times, filme de romance e mistério na Netflix vai te deixar hipnotizado Murray Close / Netflix

Baseado em best-seller do New York Times, filme de romance e mistério na Netflix vai te deixar hipnotizado

“Pássaro do Oriente” não se furta a desempenhar o papel de filme-enigma, o que, por óbvio, pode abespinhar boa parte dos espectadores, mormente em tempos de uma facilidade ilusória, em que todas as situações, mesmo as propostas pelo cinema, têm de se resolver a toque de caixa, ou que arque com as consequências de ferir as suscetibilidades de gente que se recusa a crescer.

Adaptado do romance “Delito Sem Provas”, de Susanna Jones, o filme de Wash Westmoreland, lançado em 2019, encontra no material de origem, publicado no Brasil dezoito anos antes pela Editorial Presença, um manancial de boas metáforas e, ainda assim, ousadamente, inventa arcos em que a autora não pensara, talvez por alguma justa razão mercadológica, mas sem prejuízo da constituição artística do produto.

E este é exatamente o pulo do gato aqui: decerto o leitor compreende que, por mais que um escritor se dedique, nunca há de atingir a façanha de ser entendido com a mesma intensidade do que quis comunicar, isto é, não se tem nenhuma certeza de que tudo saia como planejava no início. “Pássaro do Oriente” tem o condão de, a um só tempo, ser fiel ao texto corrido e se constituir um exemplo irrepreensível do que pode o cinema ao flertar com a literatura.  

É no mistério que o roteiro, do próprio Westmoreland, investe — ou talvez o verbo que melhor se adeque a suas pretensões seja “apostar” — ao deixar de lado a pena de Jones e assumir suas idiossincrasias acerca do trabalho da romancista. O drama de “Delito Sem Provas” cede lugar à tensão perene incorporada pelo longa, nem sempre contudo (e, uma vez mais, a delicadeza das intenções faz toda a diferença): os momentos de anticlímax emocionais, pegajosos até, são puramente instintivos, orgânicos, servem de esteio para que se experimentem novas abordagens e, desse modo, fisgam a audiência.

Ao passo que o suspense necessita de elaboração, de frieza, de cálculo, de método, a condução de um eixo narrativo tomando por guia a análise de reações comoventes é uma habilidade sensorial por excelência e, possivelmente por esse motivo, tão mais complexa. E de nada valeria tamanha dedicação sem atores que proporcionassem segurança a um filme tão perigosamente denso.

No filme de Westmoreland, Alicia Vikander está tão bem quanto em “Ex_Machina: Instinto Artificial” (2015) — e ela só não está melhor no longa de Alex Garland porque aparece muito menos do que o desejável —, e seu desempenho como Lucy Fly se compara à Gerda Wegener de “A Garota Dinamarquesa” (2015), dirigido por Tom Hooper, papel pelo qual ganhou, com todo o mérito, o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. Sua autoexpatriada Lucy Fly, uma sueca que chega a Tóquio depois de uma sucessão de tragédias pessoais, ombreia com suas personagens anteriores, célebres pelo soberbo potencial dramático.

No ofício de tradutora, a protagonista não se alinha a uma cultura que a faz parecer pouco mais confortável que um peixe fora d’água, e claro que a violência de tais inquietações se derrama em sua intimidade, primeiro no romance entre ela e Teiji, de Naoki Kobayashi, com quem nunca consegue estabelecer vínculos profundos. Algum tempo depois, Lucy padece da fragilidade espiritual que expõe sua alma e seu corpo à infestação de outros parasitas; é aí que ganha vulto a dissimulada Lily Bridges de Riley Keough, cuja trajetória de ex-enfermeira nos Estados Unidos a bartender na capital do Japão da década de 1980 se assemelha à jornada da personagem de Vikander.

Arriscando sempre, Westmoreland quebra a banca centrando as fichas pretas no talento de Keough, em cuja figura dialética o longa passa a mirar. Lucy se vê implicada num sem fim de circunstâncias esdrúxulas e perigosas, em que Lily ganha ainda mais destaque, crescendo de forma estável e em constante evolução. A protagonista, por seu turno, lhe fornece o aporte necessário até o epílogo — que deixa quase tudo por ser devidamente serenado. Quase tudo.

O suspense dramático do filme não é para todos, e essa é sua principal qualidade e seu maior defeito. Westmoreland parece ter ojeriza a tornar mais desembaraçada a vida de quem assiste a “Pássaro do Oriente”, e capta a visão de mundo de Lucy Fly, alguém com um gosto muito particular e autodestrutivo pela tragédia. Ao cabo de 107 minutos, só resta torcer para que a ave misteriosa cante depois que a terra se agita.


Filme: Pássaro do Oriente
Direção: Wash Westmoreland
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Mistério/Romance
Nota: 9/10