O filme de 32 minutos que ganhou um Oscar e é considerado um dos tesouros da Netflix Divulgação / Netflix

O filme de 32 minutos que ganhou um Oscar e é considerado um dos tesouros da Netflix

A técnica narrativa que envolve a repetição de eventos tem sido frequentemente utilizada no cinema para realçar o dilema do protagonista em redimir-se de um erro passado ou até mesmo de uma falha moral mais grave. O filme “Feitiço do Tempo” (1993), dirigido por Harold Ramis, talvez seja o exemplo mais notório desta abordagem. Além de entreter com sua premissa peculiar, o filme provoca reflexões profundas sobre o tormento que seria reviver incessantemente um mesmo dia, especialmente um que termina de forma desfavorável, uma situação enfrentada pelo personagem Phil, interpretado por Bill Murray. 

Embora partilhe semelhanças com “Feitiço do Tempo”, “Dois Estranhos” (2020) se distingue por suas escolhas estéticas distintas e a seriedade de seu tema central. Dirigido por Travon Free e Martin Desmond Roe, o filme revela uma atuação notável de Joey Badass no papel de Carter James, um homem negro de classe média alta que, após uma noite fora, anseia por retornar ao seu apartamento para cuidar de seu pitbull. O filme também inclui uma crítica ao consumismo por meio do uso ostensivo de um dispositivo controlado por um aplicativo móvel que dispensa ração. Ainda que Badass execute seu papel com destreza, são os eventos aparentemente insignificantes que se tornam cruciais para a compreensão dos eventos subsequentes no filme. 

Free e Desmond Roe exploram a realidade severa enfrentada pelos negros nos Estados Unidos, abordando a brutalidade de um sistema que ainda se alimenta de discriminação, seja ela explícita ou não, contra indivíduos que deveriam, em teoria, ser livres e ter direitos iguais. Este tema é tratado com uma gravidade que levanta o véu sobre a cruel realidade americana, oferecendo uma perspectiva quase documental, onde a ficção serve como um reflexo doloroso do cotidiano. 

Desde o início, o filme captura a atenção do espectador com imagens cotidianas de Nova York, como o tráfego na Ponte do Brooklyn, ligando Manhattan ao subúrbio onde Carter reside. A apresentação do personagem em uma posição vulnerável, mesmo que ele não seja economicamente desfavorecido, ilustra as dificuldades enfrentadas por um homem negro em uma situação semelhante, sublinhando que sua posição social não o protege das adversidades decorrentes do preconceito racial, que se manifesta em variados locais do mundo, de Nova York a São Paulo, passando por numerosas capitais europeias, onde o aumento de imigrantes é visível desde o censo de 2017. 

“Dois Estranhos” vai além do ativismo superficial, oferecendo uma narrativa poderosa sobre um homem que, apesar de seus esforços, é repetidamente confrontado e morto por um policial branco. A coragem do filme, que foi reconhecida com o Oscar de Melhor Curta-metragem em 2021, compara-se a outras produções premiadas que abordam temas de injustiça racial com igual intensidade. A violência sofrida pelo protagonista, embora retratada de forma fictícia, reflete uma realidade dolorosa que ressoa universalmente, seja o indivíduo chamado George Floyd ou João Vítor. 


Filme: Dois Estranhos 
Direção: Travon Free e Martin Desmond Roe 
Ano: 2020 
Gênero: Ficção Científica/Drama 
Nota: 9/10