A comédia na Netflix que não vai subestimar sua inteligência Divulgação / GEM Entertainment

A comédia na Netflix que não vai subestimar sua inteligência

A leitura de “Decamerão” (1353) feita por Jeff Baena reafirma o desabuso do original, publicado há 670 anos. “A Comédia dos Pecados” é uma elucubração acerca do terceiro dos dez dias narrados por Giovanni Boccaccio (1313-1375) em sua ode ao prazer sobre a falsa moral — e, principalmente, sobre a moral imposta, afetada —, flagelo de dadas regras e de certas posturas tidas por desejáveis em todos os círculos sociais a despeito de carências as mais escandalosas, que, em sendo apenas cristal, para enfeitar, não resiste e se quebra.

Em seu texto, Baena, como o toscano um especialista em remexer o mais fundo da alma humana, mas também o que ela pode ter de mais escrachado, alterna sátira e uma poesia muito sua, exaltando os sentimentos malditos, sem prescindir de uma louvação muito particular da coragem e do amor sob quase todas as formas. Estilo com que Boccaccio decerto estaria de pleno acordo, quiçá até mordido de uma ponta de inveja.

Na Garfagnana de 1347, uma jovem freira conduz uma mula serra abaixo num medievo em que o obscurantismo e o tédio são amaciados pela harmonia bucólica da paisagem. A trilha de Dan Romer presenteia o espectador com uma melodia que junta cravo e acordeão às cores quentes e aos tons pastéis da fotografia de Quyen Tran, numa feliz alusão ao Renascentismo. Depois da longa introdução, Fernanda, a soror interpretada por Aubrey Plaza, volta à abadia onde se enclausura.

Figurinos e cenários de época tornam-se uma redundância cada vez mais necessária, já que o diretor-roteirista, afirmando a estética “Monty Python” de seu longa, instiga seus personagens a dizerem gírias e palavras de baixo calão, mandando lembranças ao nosso Gregório de Matos (1636-1696), numa viagem trezentos anos à frente daquele tempo. Reposta a alimária ao estábulo, Fernanda dá início às tarefas do dia, ao lado das outras jovens irmãs do convento, e quando passa o jardineiro Lurco, Alessandra e Ginevra vão para cima do infeliz, acusando-o de molestá-las e escarnecendo de sua pretensa origem hebraica. O imbróglio entre os personagens de Paul Weitz, Alison Brie e Kate Micucci constitui um dos acintes que quase passam ao largo da indignação de quem assiste e que espera, claro, pelo escândalo sexual a que Boccaccio atirara as três freiras num tempo em que decoro era bem mais que retórica.

A chegada de Massetto, um afilhado do padre Tommasso de John C. Reilly, completa o argumento central da farsa dos vícios da carne proposta pelas aparitmeses boccaccianas. Mesmo numa participação acanhada, embora brilhante, o tipo a que Reilly dá vida ajuda a explicar o porquê da vinda do anti-herói, ainda que Baena recorra a clichês de que o poeta fez uso no século 14, figuras de linguagem então arrebatadoras, mas já sem força há algum tempo. O garanhão arrependido encarnado por Dave Franco, belo e estulto, alimenta as fogueiras que logo não poderá mais apagar, e como Alessandra, Fernanda e Ginevra não lhe dão paz, o serviço como novo encarregado do jardim se acumula a ponto de exigir a dupla interferência de Marea, a abadessa superiora, com Molly Shannon num equilíbrio cartesiano entre a parcimônia e o humor rasgado, mas sempre despertando uma emoção qualquer.

O mais do mesmo já visto em produções tão sublimes quanto esquecidas como “O Violinista que Veio do Mar” (2004), dirigido por Charles Dance, ou “O Estranho que Nós Amamos” (1971), levado à tela por Don Siegel (1912-1991), e redivivo por Sofia Coppola em 2017, é ratificado na conclusão. A peste negra, quadra histórica que obriga os verdadeiros protagonistas de “Decamerão” a enfurnar-se num castelo nas imediações de Florença num esforço pela sobrevivência, não entra em “A Comédia dos Pecados”, cedendo o espaço à concupiscência que grassa entre as freiras e o jardineiro infiel, num lembrete de que o desejo também ultraja, escraviza, adoece e mata. Como Nelson Rodrigues (1912-1980), Boccaccio era, em verdade, um pudico.


Filme: A Comédia dos Pecados 
Direção: Jeff Baena
Ano: 2017
Gêneros: Comédia/Romance
Nota: 9/10