Um dos filmes mais angustiantes, brutais e perturbadores na história do cinema nacional acaba de estrear na Netflix Divulgação / Festival do Rio

Um dos filmes mais angustiantes, brutais e perturbadores na história do cinema nacional acaba de estrear na Netflix

Apesar do flagrante exagero do título, “Holocausto Brasileiro” é, sim, a publicização tardia de uma catástrofe. Em todo o mundo, há mais de 720 milhões de indivíduos com algum transtorno psíquico, cerca de 10% da população da Terra.

No Brasil, campanhas que anatematizaram manicômios foram responsáveis por, na prática, intensificar a agonia de pacientes que recebiam algum tratamento nessas instituições; uma vez liberados, seguem para casa, onde, na melhor das hipóteses, são assistidos por parentes que, por mais bem-intencionados, não dispõem do conhecimento necessário para tratá-los de acordo com o que exige a patologia de cada um — o que só torna a denúncia feita pela jornalista Daniela Arbex e o cineasta Armando Mendz ainda mais grave.

Ao longo dos anos, começaram a pipocar casos de pessoas que passavam os dias acorrentadas, como feras, porque, privadas de cuidados básicos como terapia e medicamentos, tornavam-se de fato outras pessoas, presas de seus próprios fantasmas existenciais. Sem dúvida, o símbolo mais monstruoso da falência do Estado na condução de políticas de saúde pública para portadores de psicopatologias é o Hospital Colônia de Barbacena, no sudeste mineiro, hoje Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, sob a administração da FHEMIG, um braço da Secretaria de Saúde estadual. Arbex já havia exposto as barbáries perpetradas no Colônia em “Holocausto Brasileiro — Genocídio: 60 Mil no Maior Hospício do Brasil”, publicado pela editora Intrínseca em 2013.

Três anos depois, ela e Mendz ilustram a tragédia descrita no livro com registros irrefutáveis de uma mistura de negligência, sadismo, vigarice, charlatanismo, preconceito e inércia das autoridades, cinco tópicos que degringolam, em maior ou menor grau, num só: miséria.

Fundado em 1903 para acolher e tratar alienados, nomenclatura usada à época para designar pacientes que sofriam dos males da alma e do intelecto — e popularizada por ninguém menos que Machado de Assis (1839-1908) em “O Alienista” (1882) —, o Colônia, projetado para receber duas centenas de internos, chegou a hospedar trezentas vezes mais, fazendo justiça ao epíteto tétrico de depósito de gente, usado por Arbex, que conduz as entrevistas e aparece em cena dividindo suas impressões ao longo da pesquisa para o volume impresso de seu trabalho.

O filme, além de igualmente elucidativo, é uma provocação a qualquer um que se queira defensor das liberdades individuais. A excelente trilha pontua um plano aberto em plongée até que a câmera, sobrevoando uma estrada férrea, chega aos portões do Colônia. Mineiramente, os personagens desse enredo macabro despontam na tela, enquanto a jornalista conta em off um dos motivos que levaram à superlotação. Fotografias dos primeiros pacientes atendidos pelo hospital, construído numa propriedade de Joaquim Silvério dos Reis (1756-1819), o mais antigo dos traidores da Pátria, mostram homens, quase todos negros, nus, em grupos ou perdidos em suas próprias fantasias, num pátio sem cobertura.

No começo do século 20, Barbacena ganhou fama por seu clima ameno, e tuberculosos endinheirados do Brasil todo acorreram ao que era então um sanatório que mantinha faqueiros de prata e toalhas de renda nas mesas. Algum tempo depois, a equipe do doutor Joaquim Antônio Dutra passou a aceitar também doentes mentais, e novamente a comoção tomava conta de Barbacena, assumiu com algum orgulho um estranho apelido.

A “Cidade dos Loucos” virou destino da maioria das pessoas “não agradáveis”, de Minas e do Brasil: opositores do Estado Novo (1937-1945), outorgado por Getúlio Vargas (1882-1954) em 1937; meretrizes; homossexuais; mendigos; pessoas sem certidão de nascimento ou cartão de vacina. Três quartos deles eram mentalmente sãos, como Geralda Siqueira, Wanda Lúcia e Silvinho, os dois últimos descobertos por Helvécio Ratton, diretor de “Em Nome da Razão” (1979), também sobre as loucuras do Colônia. Em 2016, quando do lançamento de “Holocausto Brasileiro”, a FHEMIG confirmou o cadastro de 150 internos, atendidos por gente como a freira católica Mercês Hatem Osório, que dispensa novas matrículas por falta de leitos.


Filme: Holocausto Brasileiro 
Direção: Armando Mendz e Daniela Arbex
Ano: 2016
Gênero: Documentário
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.