Ganhador do Oscar, o melhor filme da história do cinema argentino está no Prime Video Divulgação/ Haddock Films

Ganhador do Oscar, o melhor filme da história do cinema argentino está no Prime Video

A categoria de Melhor Filme monopolizava todas as atenções no Oscar 2010, numa disputa acirrada entre “Avatar”, de James Cameron, e “Guerra ao Terror”, de Kathryn Bigelow — a história da captura de Osama bin Laden no Afeganistão levou a melhor, bem como a própria Kathryn Bigelow sobre o ex-marido James Cameron ao ganhar o prêmio de Melhor Diretor. O que importava mesmo era a decisão da Academia acerca do destino da estatueta de Melhor Filme Estrangeiro. 

O belíssimo “A Fita Branca”, de Michael Haneke, que já vencera o Festival de Cannes, era mais que favorito: era aclamado. O argentino “O Segredo dos Seus Olhos”, que parecia passar ao largo, dada a campanha de divulgação muito mais sóbria, surpreendeu o júri. Foi o segundo filme daquele país a alcançar o olimpo do cinema, 24 anos depois da façanha de “A História Oficial”, de Luis Puenzo. Ao se valer do conceito do tempo elástico, a trama de Juan José Campanella expõe as consequências de um crime na vida do oficial de justiça que se dedicou ao caso um quarto de século antes. 

Aposentado, Benjamín Esposito volta a se interessar pela história, para ele particularmente desconfortável por não ter tido desfecho. O mistério que o episódio guarda o motiva a escrever um livro sobre o assunto, baseado em suas memórias. Questões irresolutas do passado se impõem no cotidiano dos personagens, como também se dá em obras de Pedro Almodóvar, a exemplo de “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999) e “Abraços Partidos” (2009) — de maneira muito mais analítica, por óbvio. A trama vai unindo eventos que podem parecer soltos, mas que compõem um mosaico inteligível quando visto por inteiro.

Campanella, como já se tornou uma constante nas produções argentinas, propõe uma análise minuciosa do enredo, que tem o condão de se desdobrar em muitas subtramas, e “O Segredo dos Seus Olhos” é pródigo quanto a fomentar possibilidades diversas para um mesmo relato. 

Admitindo-se a hipótese de dividir o filme em dois tomos, sendo o primeiro o que remonta a 1974, quando Benjamin é indicado como investigador do “caso Morales” — o estupro e morte de Liliana Colloto —, e o outro se sucedendo duas décadas e meia depois, no ano 2000, momento em que o personagem, já retirado da polícia, decide escrever um romance cuja base é a ocorrência em que esteve envolvido, o diretor oferece ao público uma história que transcende a questão do gênero cinematográfico, dando ao espectador as pistas certas a fim de, junto com Esposito, solucionar de vez o delito ou mesmo se localizar no que é contado, já que a linearidade temporal nunca é respeitada, felizmente. 

Narrando fatos que concorrem, valendo-se do recurso de nunca dar um intervalo longo demais entre os planos, crescem as expectativas sobre o próximo lance. Parece óbvio, mas não é todo filme, nem mesmo os que se querem enigmáticos, a chegar lá.

Discípulo dos mais aplicados do escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849), Campanella a toda hora sugere à audiência participar desse jogo com ele, sabendo como ninguém transitar entre o que pode haver de mais provocante e rico na literatura de Poe, sem se esquecer de que apresenta um filme, isto é, um produto artístico baseado na noção da imagem, que não se sobrepõe ao verbo, mas caminha com ele, uma ressaltando a importância do outro. 

“O Segredo dos Seus Olhos” se arvora justamente em sua natureza imagética para fazer o que Poe, nem escritor algum, poderia: dispor de sequências pictóricas muitas vezes fragmentadas e antagônicas do ponto vista lógico para induzir quem assiste a este ou àquele raciocínio, a tal ou qual conclusão, não necessariamente acertada.

Também é nítida a influência de outro vulto da literatura, Jorge Luis Borges (1899-1986), para que voltemos à Argentina. Nos contos de Borges sempre resta uma aura de qualquer coisa imprecisa, nebulosa. O leitor tem a impressão de que havia algo relevante a ser comunicado mas, por motivos que fogem-lhe à compreensão, a mensagem se perde — e é ela quem vai definir se a esfinge o devora ou será decifrada. 

Em Poe, Borges e Campanella, tudo vai e vem ao sabor da conveniência do texto, criando um resultado que surpreende pela originalidade, quando, sob a perspectiva da lógica, deveria ser esperado. Esposito é uma alma que se pulveriza entre os anos 1970 — onde precisa estar a fim de escrever sua novela — e o futuro, representado pela peroração iminente da ocorrência em que trabalhara há 25 anos.

Talvez uma chave para se chegar a uma pista (verdadeira) seja a sequência em que, em 1974, o protagonista conhece o sujeito com quem conversa sobre futebol, assunto pelo qual não tem interesse. Por meio de uma sucessão de diálogos amenos, aos quais o público não presta muita atenção, Campanella levanta evidências sobre o que pode ter acontecido de fato, sugerindo inclusive onde o assassino poderia ser encontrado. 

Esposito, por natural, fica intrigado com a aparição repentina do homem, da situação em si, e, tomando o argumento da suposta falta de nexo entre um evento e outro, começa a encaixar as peças soltas dessa engrenagem, como fazia o Mestre do Suspense, seu colega de ofício. É possível apontar algumas semelhanças entre o trabalho do argentino e a obra do britânico Alfred Hitchcock (1899-1980), especialmente “Um Corpo que Cai” (1958).

Neste trabalho, Hitchcock também emprega a figura de um policial aposentado que por alguma trapaça do destino não se separa de sua velha vida. John “Scottie” Ferguson, o protagonista de “Um Corpo que Cai”, só queria gozar de alguns anos de tranquilidade ao fim de décadas de combate ao crime e esperar a morte de um jeito decoroso, como faz todo mundo — ou fazia, em 1958. 

O busílis é que ele não planejava ter interrompido a carreira e, pior, ter sido forçado a tão drástica providência, uma vez que seu medo de altura — um elemento cômico, ainda que sutil, em Hitchcock — não dava-lhe refresco. A acrofobia de Scottie configura-se um ponto de contato com a ignorância do anti-herói de “O Segredo dos Seus Olhos” acerca de futebol, seu calcanhar de Aquiles muito menos grave (Scottie, por seu turno, fora o responsável pela morte de um colega enquanto os dois perseguiam um bandido sobre um telhado).

Bastante embaraçado depois da conversa informal que tem com um colega, sobre uma mulher em apuros, Scottie, assim como Esposito, volta à rotina de averiguações. A partir desse ponto, Campanella urde sua própria teia, orgânica e fluida como a de Hitchcock, amparado no roteiro de sua autoria e baseado no livro homônimo de Eduardo Sacheri.

Confrontrado com seus malogros, o Benjamin Esposito vivido por Ricardo Darín — cujos talento e versatilidade passaram a encarnar a própria indústria cinematográfica argentina —, da mesma forma que o John “Scottie” Ferguson de Hitchcock, é um dos personagens mais densos já levados à tela pelo cinema. Nesse enredo caudaloso, como o título dá a pista, os olhares são vitais para não se perder nada. “O Segredo dos Seus Olhos”, no Prime Video, é um filme sobre o que não se deixa ver.


Filme: O Segredo dos Seus Olhos
Direção: Juan José Campanella
Ano: 2009
Gêneros: Crime/Thriller
Nota: 9/10