História de amor sobre solidão, esperança e autoconhecimento, na Netflix, vai tocar cada pedaço do seu coração Divulgação / Universal Pictures

História de amor sobre solidão, esperança e autoconhecimento, na Netflix, vai tocar cada pedaço do seu coração

Acordar todo santo dia e encher os pulmões de ar novo é, sem nenhum exagero, um privilégio para o qual só atentamos ao assistir a um filme como “A Cinco Passos de Você”. A fibrose cística, carinhosamente chamada de FC por seus portadores, é uma doença respiratória rara, porém democrática, que dota as células que produzem muco, suor e sucos digestivos de uma força que não deveriam ter.

Esses fluidos tornam-se espessos, glutinosos, aderem às fossas nasais e aos alvéolos pulmonares como cimento numa tubulação e, por conseguinte, barram a entrada do oxigênio e a saída do gás carbônico. Por paradoxal que soe, a FC afeta também muitas pessoas jovens, e então, talvez faça mais sentido sua alcunha de “a doença do beijo salgado”, informação que Stella, uma garota de vinte e poucos anos, jamais pode corroborar.

Justin Baldoni transforma o livro homônimo de Mikki Daughtry, Rachael Lippincott Tobias Iaconis e Amanda Moura, publicado em 2018, centrando boa parte da ação no excelente desempenho de Haley Lu Richardson, que mergulha de cabeça na agonia de Stella, mas também deixando sempre acesas as lamparinas da esperança e mesmo da alegria sincera de sua personagem.

O roteiro de Daughtry e Iaconis vai abrindo espaço para outras figuras ainda mais atormentadas que Stella, mas ainda assim é a mocinha sofredora de Richardson quem conduz seus passos nessa trama de melancolia gradual, que a todo instante debica da fé do espectador, sem o menor compromisso com suas pobres ilusões de um final ditoso.

Stella conhece o hospital como sua própria casa, e, na verdade, são raras as passagens em que nossa heroína surge, em flashback, privando da intimidade de seu quarto, talvez jogada na cama, lendo ou ouvindo uma canção pop despretensiosa no volume máximo. Ela parece nem sentir falta de sua vida normal, tão à vontade em meio às caixas de remédios que ela mesma arruma, um leito impecavelmente limpo, o panda de pelúcia e os desenhos e fotos que disfarçam a morbidez das paredes.

Também já virou amiga de Barb, a enfermeira-chefe de Kimberly Hebert Gregory, que nunca encara com naturalidade a câmera semiprofissional com que sua paciente mais heterodoxa faz imagens para o vlog que mantém numa plataforma de vídeos, justamente desmistificando tabus e prestando um serviço de utilidade pública também ao dar seus testemunhos acerca da vida com FC — porque, sim, ela existe. Baldoni entorpece a audiência com a autoconfiança de sua protagonista enquanto nos abastece de dados técnicos sobre a condição de Stella.

A garota pode ter um pouco mais de dignidade e se livrar de sondas nasais e do maldito acesso gastrointestinal, o G — culpado por um grave revés na saúde de Stella a dada altura — caso seja beneficiada com um transplante duplo de pulmão, mesmo por uns cinco anos, até que as secreções excessivamente gosmentas acabem por vencer também o novo órgão e, se um protocolo de fato revolucionária não tiver sido descoberto, seu martírio comece outra vez. Esse é o gancho para que um segundo personagem entre na história, realçando o brilho de Richardson e destacando-se por si só.

Will também é uma vítima precoce da FC, mas seu entendimento da doença e, principalmente, da vida que teima em resistir a ela, é avesso ao de Stella. Conforme o enredo toma corpo, sabe-se que é mais desgraçado que Stella, uma vez que seus pulmões foram tomados pela Burkholderia cepacia, um gênero de bactérias patogênicas oportunistas, o que invalida a transplantação de órgãos saudáveis.

Talvez isso possa explicar — mas nunca justifique — seu cinismo, sua rebeldia e, claro, sua profissão de fé no comportamento autodestrutivo que Stella tenta mudar, ou, ao menos, tornar menos aflorado, na medida em que saca de argumentos ora racionais, como estarem os dois, guardadas as proporções, no mesmo barco, ora coléricos, insinuando que, se ele quisesse mesmo entregar-se à FC, já o teria feito, e longe dali, onde apenas usurparia o lugar de alguém que deseja lutar por sua sobrevivência.

Desse momento até a conclusão ambígua quanto ao fim do novo interno, o diretor municia “A Cinco Passos de Você” com sequências mais e mais perturbadoras, em que Stella e Will se aproximam perigosamente, sem figura de linguagem: já no título, está óbvio o distanciamento a que os dois novos colegas devem se submeter, a fim de evitar a contaminação cruzada, uma complicação a mais da FC. Depois que entram num acordo e Will aceita levar a sério o tratamento, desde que exerça sua habilidade de desenhar e tenha Stella por musa, tem início o grande drama do longa, administrado com esmero por Baldoni: como uma relação pode resistir à impossibilidade do contato físico?

Uma pequena confusão com o sistema de medidas — seriam cinco ou seis passos? Cinco pés ou cinco metros? — não é o suficiente para empanar o vigor do que ainda há por ser revelado. Cole Sprouse dá a exata dimensão da angústia de se viver cerceado em suas necessidades mais básicas, mais íntimas; a antes onipresente fúria de Will arrefece, tolera um pouco mais de um otimismo às vezes vesano, ao mesmo tempo que Stella admite que não viveu tudo quanto deveria, por mais conformada que se mantenha.

Entre os dois, o taco de sinuca que encaram como a extensão de seus corpos, uma ponte de um para o outro, passa a ser a única testemunha de suas confidências e do sexo possível, à beira da piscina (não cabem aqui muitos comentários a respeito das verdadeiras instalações de saúde nos Estados Unidos para quem não tem dinheiro), muito mais que Poe Ramírez, do ótimo Moises Arias, o terceiro paciente da ala que abriga os doentes de FC e bom respiro cômico, com a licença do trocadilho. 

Na iminência do desfecho, dois episódios funestos liquidam a unidade do trio, e malgrado Stella consiga seus pulmões novos, qualquer um derrama uma furtiva lágrima pelo destino de Will e Poe. À vencedora, as batatas.


Filme: A Cinco Passos de Você
Direção: Justin Baldoni
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 9/10