Indicado a 2 Oscars, tesouro do cinema europeu conhecido por poucos está no Prime Video Divulgação / Oslo Pictures

Indicado a 2 Oscars, tesouro do cinema europeu conhecido por poucos está no Prime Video

Quem não recebe a graça de nascer com o espírito já blindado pela força da resiliência, propriedade da física que, aplicada aos seres humanos, define o quão inabaláveis podemos mostrar-nos frente aos choques, precisa começar rápido sua busca por esse atributo misterioso, mas que será de importância cada vez maior. A todos assiste o direito de, em não arruinando a vida alheia, cometer todas as insânias que quiser e conseguir, e esse princípio básico da vida é observado com fervor por Julie, a garota cuja figura entre quase luminosa e quase sombria “A Pior Pessoa do Mundo” estende-se por mais de duas horas.

A quase personagem-título de Joachim Trier é, de fato, um tanto malévola em sua liberdade irrefreável; contudo, age de modo tão espontâneo que é impossível não encontrar-lhe aquele fascínio que derrete até o mais férreo dos corações e mantém firme sua presa até o bote sutil. Primo distante de um mestre na arte de elaborar tipos femininos plenos de nuanças, ora diabólicas, ora virginais, Trier tem um quê de Lars von Trier, embora seu trabalho vibre pelo próprio diapasão, e há algum tempo.

Em 2006, o diretor passou a ser conhecido por sua Trilogia de Oslo, inaugurada com “Começar de Novo”; cinco anos depois, “Oslo, 31 de Agosto”, um remake de “Trinta Anos Esta Noite” (1963), o clássico de Louis Malle (1932-1995), alegoria sobre o talento e a loucura, consolida a intenção de esmerilhar os desejos mais secretos por trás de personalidades brilhantes. “A Pior Pessoa do Mundo” fecha o ciclo de maneira a não deixar margem para equívocos: Joachim Trier é um romântico bastante lúcido.

Julie fuma no terraço com vista para o rio Akerselva, enquanto Aksel, seu namorado década e meia mais velho, recebe amigos e outros convidados no lançamento de seu gibi. Trier e Eskil Vogt, seu colaborador mais frequente, distribuem as idas e vindas do relacionamento de Julie e Aksel por um prólogo e doze capítulos, todos ao sabor da volubilidade angustiada e angustiante da anti-heroína de Renate Reinsve, presente em todas as cenas sem que isso jamais venha a ser um problema e sem que se descubra se Julie é uma manifestação extasiante de vigor ou se os homens que cercam-na é que são tíbios demais.

Essa primeira imagem, como uma visão de mau agouro do que se verá no transcurso das doze partes, é usada no meio do filme com o propósito de deixar claro que a Julie fora a mesma sempre, e que se seus amantes não o perceberam, azar o deles. Quando, a certa altura, o diretor entra na intimidade de seu casal de protagonistas, fica ainda mais patente a inconformidade de Julie não para com o parceiro, mas no meio em querem aprisioná-la. Ela está às portas dos trinta anos e tem tudo a resolver, começando pela carreira, depois que abandonara a faculdade de medicina pela súbita epifania de ter se achado como uma admiradora das emoções, logo obrigada a migrar para a psicologia, para, afinal, entregar-se à subita paixão por capturar modelos e situações à luz difusa da Escandinávia — a fotografia de KasperTuxen martela essa noção na cabeça da audiência.

A discussão interna acerca de que ofício abraçar, mediada por uma narradora feminina, é um ponto-chave para se entender o que Trier pretende, mas o núcleo fundamental da história é mesmo a conversa de travesseiro que Julie mantém com Aksel, hora em que, finalmente, Anders Danielsen Lie tem a chance de apresentar um trabalho metódico e comovente, desdobrando as muitas camadas de um homem frágil, tão dependente da companheira que acaba tendo de se conformar só com sua amizade, sincera, mas pautada pelo comedimento. Como fizera com o pai.

O caso de Julie com Eivind, o desconhecido que encontra numa festa de casamento para a qual não fora convidada, dá a impressão de ser uma evasiva do diretor, mas no desfecho boa parte do que se assiste gira em torno dessa relação tão improvável quanto absorvente, para os dois, com Herbert Nordrum, de igual maneira que Lie, regalando o espectador com uma composição plena de nuanças, sem perder de vista, como se dá com Aksel, a debilidade moral do personagem. Na iminência do encerramento, duas revelações tornam a unir Julie ao primeiro namorado, mas não há nenhuma dúvida: só ela poderia ter sido feliz.


Filme: A Pior Pessoa do Mundo
Direção: Joachim Trier
Ano: 2021
Gêneros: Romance/Comédia/Coming-of-age
Nota: 9/10