Considerado um dos filmes mais perturbadores de todos os tempos, suspense na Netflix é diferente de tudo que você já viu Divulgação / Universal Pictures

Considerado um dos filmes mais perturbadores de todos os tempos, suspense na Netflix é diferente de tudo que você já viu

Muito menos racional do que aquele que orienta sua vida pelos tantos expedientes que só podem degringolar em insânia e maldade é quem espera algum resquício de sensatez em gente que entende a vida como um jogo sem regras, no qual tudo pode ser feito para se chegar ao topo. Nascemos todos inexoravelmente mergulhados em questões muito nossas, cujo sentido revela-se apenas para nós mesmos — e não sem antes nos atormentar pelo tempo necessário para que a vida nos presenteie com a centelha quase mágica do discernimento, atalho que, de quando em quando, o espírito toma em busca da razão —, mantidas como um raro tesouro a distância dos olhares morbidamente curiosos de quem nos odeia e da perplexidade muda e inconformada das pessoas que nos querem bem. Defrontando um dos temas mais urgentes do nosso tempo, “Corra!” arrasta o espectador para o centro de uma narrativa perturbadoramente sedutora, mas também rigorosa, que exige-lhe atenção e sensibilidade em igual medida. Peele sabe muito bem do que está falando: a ebulição do pensamento racialista após uma brevíssima trégua, abordada em seu roteiro algumas vezes, vem a lume sob a forma mais frenética e agressiva, justa circunstância em que aproveita para ir mais fundo no debate que torna seu trabalho tão indispensável.

Centro das atenções no Festival de Cinema de Sundance de 2017 — onde estreou numa sessão exclusiva para convidados —, “Corra!” desde o princípio deixa muito claro que Peele não tem a intenção de aliviar nada. O possível romantismo de um casal que faz sua primeira viagem depois de cinco meses de namoro, à casa dos pais da moça, transforma-se logo numa fonte de aborrecimento e paranoia, e o motivo está, literalmente, na cara. Pouco antes, ao longo da primeiríssima sequência, Andre, o personagem encarnado por Lakeith Stanfield anda tranquilo por uma rua de casas portentosas, até perceber que é seguido de muito perto por alguém num carro. Se havia uma hesitação quiçá justificada quando ao que o diretor quer dizer, essa bruma inicial de mistério se dissipa quando a ação corta para Chris e Rose, os protagonistas muito bem assumidos por Daniel Kaluuya e Allisson Williams, fazendo as malas para o tal passeio. Depois de uma conversa breve, fundada num provável estranhamento dos pais de Rose quanto ao fato de Chris ser negro, eles pegam a estrada. 

O receio meio psicótico de Chris, como o de um animal inerme que sente o cheiro do próprio sangue, se aguça, numa escalada gradual e constante de diálogos que explicitam a hostilidade entre os convivas, também ressaltada, paralelamente, pela fotografia de Toby Oliver em tons pesados como azul petróleo e verde musgo. O que acontece no terceiro ato, com referências a hipnose, lobotomia e transplante de cérebro — além de uma breve referência a Jeffrey Dahmer (1960-1994), o assassino em série que se notabilizou por seduzir, matar e canibalizar rapazes pretos, na boca de Rod, com o ótimo respiro cômico de LilRel Howery —, faz questão de lembrar que “Corra!” é um filme sobejo, mas urgente. E que o racismo pode ser bastante civilizado quando deseja atingir seus propósitos mais escusos.


Filme: Corra!
Direção: Jordan Peele
Ano: 2017
Gêneros: Terror/Thriller
Nota: 9/10