Ninguém resiste à abnegação humanista, ainda que embalada por uma rudeza impenetrável, das criaturas superiores que flutuam alguns metros acima dos simples mortais, mas sem vontade nenhuma de esfregar seus poderes extraordinários nas fuças de quem quer que seja. O protagonista de “Jack Reacher – O Último Tiro”, o primeiro longa de uma franquia que, inexplicavelmente, acabou cedo demais — talvez por um excesso de Tom Cruise em missões impossíveis —, confere toda relevância ao sofisma que rompe este texto. Um dos personagens mais enigmáticos da carreira de Cruise e do cinema, Reacher, ex-inspetor militar que abandona uma trajetória que teria tudo para ser brilhante e passa a viver de biscates como justiceiro profissional, não tem paciência para o tédio do dia a dia nem contemporiza com aqueles que falam além do necessário: se viver começa a ficar uma chatice, é hora de jogar tudo para o alto e começar de novo. O protagonista de “One Shot”, romance policial do inglês Lee Child, parte de uma coleção, amalgama Dirty Harry, James Bond e uma boa pitada de Hannibal (renunciando ao canibalismo, mas com sua indestrutível psicopatia), sem dor na consciência, se é que ele tem algo que ao menos de longe se assemelhe a isso. Reacher é uma composição minuciosa de seu intérprete, espinafrado em muitas ocasiões, e com razão, mas, justiça se lhe faça, um ator que entende como poucos seu ofício. O gosto de Cruise por encabeçar histórias ingratas do ponto de vista narrativo somado à famosa aversão a dublês, que o faz despencar de alturas incivilizadas e dirigir ele mesmo à velocidade do som, se converte num capital de grande valor em empreitadas assim. Tanto afinco até passa por um ligeiro desdém da vida como ela é, o maior ponto de contato entre o personagem e o homem que o encarna — e um ótimo pretexto para se assistir ao trabalho de Christopher McQuarrie.
O diretor apresenta Reacher a partir de um roteiro, seu e de Child, sem grandes surpresas. O personagem de Cruise está tentando cumprir uma de suas tarefas, e o espectador acompanha tudo de um ângulo privilegiado, o campo de visão do próprio atirador. São disparados seis tiros, mas apenas cinco encontram a meta; a prisão de James Barr, o veterano do Exército vivido por Joseph Sikora, em alguma medida relacionada ao episódio, desencadeia quase todos os eventos que se seguem. O detetive Emerson, de David Oyelowo, prende o suspeito, e o procurador Alex Rodin, personagem de Richard Jenkins, só pensa em condená-lo. Rodin é a típica raposa dos tribunais, vencendo um caso após o outro, o que o coloca em rota de colisão direta com a filha Helen, a advogada de Rosamund Pike, que tem sua merecida chance de brilhar aqui, à diferença do que acontece em filmes como “Educação” (2009), de Lone Scherfig, por exemplo. Sempre acossada por desconfianças quanto aos métodos do pai, que têm redundado em condenações sem provas e inocentes no corredor da morte, Helen é um excelente contraponto ao, digamos, pragmatismo do anti-herói de Cruise. McQuarrie elabora bem o que argumento que se transforma num dos leitmotive mais importantes, graças ao talento soberbo de Pike, que sabe como ninguém torcer enredos a seu favor. Não obstante contrariar a vontade paterna, Helen aceita defender Barr, o que implica enfrentar Rodin nos tribunais. Enquanto isso, Reacher prepara-se para dar cabo do personagem de Sikora, mas conforme se aproxima da advogada — relacionamento sem direito a romance, mas permeado por muita tensão sexual —, mais se convence de que deve poupá-lo e juntar-se a ela na defesa do ex-militar.
Por paradoxal que soe, “Jack Reacher – O Último Tiro” quase fica monótono, com tudo girando em torno da solução do caso, ainda que as participações de Werner Herzog como o vilão Zec movimentem a trama aqui e ali; todavia, são mesmo as contradições essenciais de seu antimocinho que elevam o filme à categoria de produto eminentemente cinematográfico. A atuação de Tom Cruise, por seu turno, é densa o bastante para fazer de Reacher um personagem que transcende o status de mero herói de filme de ação e quase descortina seus medos mais íntimos. “Quase”, porque é sempre necessário conservar algum mistério.
Filme: Jack Reacher – O Último Tiro
Direção: Christopher McQuarrie
Ano: 2012
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 9/10