O filme da Netflix mais perturbador de 2023 Divulgação / Netflix

O filme da Netflix mais perturbador de 2023

Educar crianças nunca foi exatamente fácil, mas houve uma época em que o ruído na sintonia entre pais e filhos era bem menos intratável. Havia pessoas e associações verdadeiramente empenhadas em ajudar no encaminhamento moral daqueles novos futuros homens, até que o cristal das ilusões esboroou-se. O registro de uma espiral de crimes que atravessaram gerações é o propósito de Brian Knappenberger em “Arquivos da Perversão: Os Abusos na Boy Scouts of America”, investigação minuciosa acerca da sordidez humana em sua natureza mais requintada, em que o espectador sente um misto de revolta, asco, ira e horror diversas vezes ao longo do pouco mais de hora e meia de exibição, justamente por saber que absurdos dessa grandeza acontecem mundo afora desde o princípio dos tempos, malgrado em certos lugares, por mais emperrados que os processos se revelem, se faça justiça. E não é para menos que ela tarde assim: a centenária Boy Scouts of America, uma das mais vetustas organizações educacionais com foco no incentivo à liderança e ao respeito a cosmovisões e dogmas de fundo conservador dos Estados Unidos, tenta manter o nariz acima da linha da água há três anos e meio, paralisada por uma enxurrada de ações cíveis-criminais movidas por escoteiros que frequentaram suas reuniões. Em fevereiro de 2020, a BSA decretou falência ao receber nada menos que 82.209 notificações judiciais por crimes a exemplo de importunação sexual, lenocínio, estupro de vulnerável e tortura. E o pior estava por vir.

Garotos marcham por uma trilha pedregosa enquanto uma voz masculina anuncia para que serve a BSA: receber jovens e dar-lhes um papel na vida. Um anúncio composto por Norman Rockwell (1894-1978) é o único respiro poético numa história tão empestada dos odores do que pode existir de mais infecto nos porões da alma do homem. Na gravura, uma família saboreia uma torta de maçã num dia de sol, clara alusão a um dos mais conhecidos epítomes dos scouts americanos. Quando ninguém os vê, esses cidadãos de bem, patriotas, defensores incondicionais da retidão da célula familiar como berço da grandeza dos Estados Unidos, partem com tudo para cima de meninos indefesos, e o autoproclamado maior clube para a juventude americana, merecedor do respaldo de presidentes como Barack Obama, Bill Clinton e Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), metamorfoseia-se num castelo mal-assombrado, cujas muralhas escondem tiranos libertinos e muito perigosos.

Knappenberger junta às criteriosas imagens de arquivo depoimentos de gente a exemplo de Christopher Haywood, um homem negro de cerca de quarenta anos que passou pela BSA entre 1993 e 2004. Criado no South Side, o bairro de classe média de Chicago de onde também saiu Obama, Haywood mesmeriza o público ao admitiu que sentiu-se mais confortável sofrendo quieto as investidas de um monitor porque, se o acusasse, ninguém dar-lhe-ia crédito. O diretor não lhe pergunta o porquê, mas é óbvia a entrada do componente racialista, ao menos neste caso, tópico que faculta a discussão do preconceito contra homossexuais, tanto entre os educandos como nas fileiras do corpo de instrutores. Essa é sem dúvida a cereja podre desse bolo, e pela fala de George Davidson, o advogado dos executivos-chefes da BSA, se verifica que a direção sacou da cartola o expediente ao mesmo tempo tão genial e tão rasteiro de perseguir e expulsar gays, a fim de erradicar a pedofilia. Como todo mundo sabe, pedófilos são quase sempre inabalavelmente discretos quanto a suas preferências, e o descalabro não cedeu. O golpe certeiro na mais remota possibilidade de fazer a BSA abandonar a velha prática de acobertar exorbitâncias morais de seus quadros foi a demissão a pedido de Michael Johnson do posto de coordenador de Proteção Juvenil dos Escoteiros. Johnson deixou o cargo de investigador da Divisão de Abusos Sexuais do Departamento de Polícia de Plano, no Texas, para empenhar-se de perto na averiguação do mistério em torno da BSA, até descobrir-se parte de uma operação que almejava justamente o oposto, isto é, conferir à Boy Scouts of America um lastro de honradez, amparada numa vultuosa campanha de marketing. As entradas em cena do policial são de longe o ponto alto do filme, ombreando com a análise de Patrick Boyle, o jornalista que cobriu o escândalo para o “The Washington Post”.

Apesar de falida depois do bloqueio de 2,46 bilhões de dólares, de ter gastado trezentos milhões em honorários e dever outro bilhão a consultores, a BSA não encerrou suas atividades. Os ofendidos ainda não receberam um centavo das indenizações, e podem continuar no sereno por décadas.


Filme: Arquivos da Perversão: Os Abusos na Boy Scouts of America
Direção: Brian Knappenberger
Ano: 2023
Gêneros: Documentário/Policial
Nota: 9/10