Distopias servem para que nos lembremos do caos que reina no mundo desde o princípio dos tempos. Teimamos em cavar mais fundo o poço econômico-moral para onde muitos se conformam em marchar, como a serpente que enfeitiça o camundongo e o devora sem ao menos ter de dar o bote, esperando depois que alguma força superior se compadeça de nós e abrevie a pena dos tantos infelizes já alijados do mínimo de que se necessita para uma existência suportável, em verdade desejando que nos colha a morte, única solução para tantos daqueles há muito tomados pela consternação e pelo desespero, fim seguro da agonia. “Jogos Vorazes: Em Chamas” persiste, acertadamente, nas várias sendas que Gary Ross principiara a desbravar no filme inaugural da série, um ano antes, e, agora, Francis Lawrence acha a oportunidade perfeita para esticar a corda, que fica sempre a um triz de romper-se. É exatamente essa tensão o que sustenta a força do roteiro de Michael Arndt e Simon Beaufoy, adaptado dos livros de Suzanne Collins. Entretanto, por óbvio, a mágica acontece para muito além da frieza do papel.
Dizer que a graça da franquia é Jennifer Lawrence é selvagem redundância. Ainda numa fase incerta da brilhante carreira que viria a trilhar, a protagonista — cujo sobrenome em comum com o diretor é mera aleatoriedade —, galvaniza as instâncias de sofisticada reflexão do enredo, sem prejuízo de idiossincrasias técnicas a exemplo da fotografia melancólica de Jo Willems, ou da trilha quase burocrática, mas precisa, a cargo de James Newton Howard, ao contrário. Aqui, Katniss Everdeen e Peeta Mellark, seu outrora adversário, continuam a encarnar um romance meio borocoxô, muito por causa de Josh Hutcherson, carismático como uma garrafa vazia, ao passo que são impelidos a pelejas mais e mais cruentas. Meio a contragosto, Katniss e Peeta catalisam o início de uma série de pequenas revoluções contra o Capitólio, com Panem, o bloco composto pelos doze distritos, experimentando um inesperado fortalecimento, nunca visto antes. Enquanto prepara o espírito da audiência para incontáveis outras sequências de prélios, nos quais cada distrito indica dois de seus residentes — os chamados tributos —, um de cada de sexo, Lawrence abusa da ótima participação de Stanley Tucci na pele de Caesar Flickerman, o afetado apresentador do reality show que devassa a vida dos novos gladiadores.
O diretor conserva a aura de fábula escatológica da pena de Collins, girando em torno de como os dois tributos do Distrito 12, o mais pobre, se comportam no decorrer da preparação para o confronto, que terá um único vencedor. Nesse diapasão, da guerra por ideais duvidosos, vibram também o Presidente Snow, de Donald Sutherland, e Plutarch Heavensbee, de Philip Seymour Hoffman (1967-2014), antagonistas como raramente se vê por aí.
Filme: Jogos Vorazes: Em Chamas
Direção: Francis Lawrence
Ano: 2013
Gêneros: Ação/Ficção científica
Nota: 9/10