Depois de algum tempo, do alto da maturidade que chega para cada um na quadra oportuna, cristaliza-se a evidência de que os laços que estreitamos ainda em tenra idade são aqueles que dispõem de mais chances de se manterem pelos desencontros da vida afora. A união dessa mágica aos humanos desejos — mesmo que pareçam forçados a crescer cada qual no seu recinto — dá em algo novo, de difícil classificação, o grande enigma do sentir que nunca fenece. Este, decerto, não é o caso dos personagens de “Glass Onion: Um Mistério Knives Out”. No segundo filme sobre um enredo que tem muita lenha para queimar, Rian Johnson conserva a estrutura de um suspense mordaz, franqueando o horizonte dramático dos tipos que apresenta, ricaços abduzidos pelo tédio que se dedicam a joguinhos fúteis (mas perigosos) para olvidar sua irrelevância.
Remontando a uma canção dos Beatles, o texto de Johnson ilumina as muitas camadas aparentemente translúcidas das relações entre os homens, destros em filtrar toda a luz que possam absorver e mudá-la numa energia odiosa. Como não poderia deixar de ser, o diretor segue cultuando — de um modo bastante original, que se diga — Agatha Christie, (1890-1976), sem prejuízo dos trechos cômicos que servem de tempero bem dosado para uma narrativa saborosa, estilo a que a Dama do Crime não levantaria qualquer objeção. A exemplo do que se constata no longa que abre a franquia, Johnson perturba o seu tanto a ordem do estabelecido no gênero e vive transfigurando o enredo, sem importar muito quem fará o quê, mas a que altura da história se vai chegar ao assassino, que a propósito, ainda não existe. Se no longa de 2019, o defunto cujo algoz se queria encontrar era Harlan Thrombey, famoso autor de contos de mortes violentas — e essas jogadas metalinguísticas soem cair logo no gosto do público —, degolado com requintes de crueldade aos 85 anos em sua própria mansão, aqui, Benoït Blanc, o requintado detetive que inspira perfis na “New Yorker”, de um Daniel Craig mais e mais artisticamente maduro, é chamado a partilhar das excentricidades de convivas com um bocado de parafusos a menos. Mesmo a fina crítica social proposta pelo diretor-roteirista não se esboroa, com o destaque à tragicômica alienação de Kate Hudson encarnando Birdie Jay, a dondoca pouco inteligente que tenta sufocar seu esplim dando festas literalmente incendiárias que redobram o marasmo de uma existência durante a qual tudo chegou-lhe com uma facilidade que paralisa — isso quando não aproveita para destilar nas redes sociais uma intolerância racial entre ingênua e criminosa. Estímulo para que a Cassandra Brand de Janelle Monáe, consciência encarnada da turma, dedique-se a tirar alguns esqueletos do armário.
Talvez o grande vício de “Glass Onion: Um Mistério Knives Out” seja mesmo o tempo de exibição, de tal modo dilatado que faz quem assiste teorizar incontroladamente sobre o sorrateiro epílogo. Nada, porém, que não se resolva numa terceira empreitada de Benoït Blanc.
Filme: Glass Onion: Um Mistério Knives Out
Direção: Rian Johnson
Ano: 2022
Gêneros: Thriller/Crime/Comédia
Nota: 9/10