Alivie sua mente e aqueça seu espírito com essa joia belíssima que acaba de estrear na Netflix Divulgação / Miraj Films

Alivie sua mente e aqueça seu espírito com essa joia belíssima que acaba de estrear na Netflix

Conquistas implicam renúncias, muitas vezes até gravosas demais. Enquanto não recebemos da vida tudo aquilo que julgamos nosso, vamos nos entregando e nos deixando consumir pela busca desesperada por algo que justifique o grande sofrimento que é o existir, sem que entendamos que, à medida que reconhecemo-nos no mundo, o prosaico torna-se beleza antes que tenhamos nítido o rumo que devemos seguir para alcançar a outra estrada, muito mais tortuosa, que vai dar no sonho dourado cujo sabor é feito só para a nossa boca. “Uma Confeitaria para Sarah” vai do doce ao amargo numa mesma cena, reservando ao espectador ora surpresas verdadeiramente perturbadoras, ora mantendo a receita aconchegante das comédias dramáticas inglesas, sempre muito bem temperadas com romance. Eliza Schroeder capta à perfeição essa necessidade do público quanto a sair de si, mas também encontrar-se nos personagens de uma história que poderia ser a sua, uma vez que ninguém escapa ao destino, nem ao seu e nem ao daqueles que o rodeiam. Tirando de seu roteiro, escrito com Jake Brunger e Mahalia Rimmer, momentos de inesperado lirismo, a diretora se aproxima de alguns dos grandes filmes do gênero que têm as bucólicas paisagens da Inglaterra por cenário e o coração do homem como meta, não devendo nada aos clássicos do britrom, o tradicionalíssimo romance britânico.

Um barco cruza uma ponte. Uma mulher despenca-se por uma rua de bicicleta, como se tentasse recobrar as horas, os dias, os anos perdidos, quiçá até sentindo que aqueles últimos instantes seriam os definitivos, que sua felicidade dependia disso, que sua alma estava sujeita a sua prontidão, que quanto mais se adiantasse, mais perto estaria de muitas outras possibilidades, a um triz da plenitude. Sarah, uma participação afetiva da padeira Candice Brown, ia apanhar as chaves da loja onde funciona a padaria onipresente nos sóbrios 97 minutos de projeção, mas é atropelada e morre, restando à sócia, Isabella, resolver o novo grande imbróglio de sua incipiente carreira empresarial. Schroeder aproveita os respiros entre um e outro conflito mais denso para também explorar a boêmia Notting Hill, bairro a oeste de Londres, imprimindo a seu trabalho a natureza de registro estimulante da alma do Reino Unido, injustamente tachado de frio, insosso, apática às tragédias e às delícias da rasteira humanidade. A personagem de Shelley Conn até tenta desfazer o negócio, alegando que a amiga morta é que era a chef responsável e, consequentemente, o sal da empreitada, mas não resta coisa alguma a ser feita que não seja levar o projeto adiante, sem Sarah e suas mãos privilegiadas de cozinheira de vasto tirocínio. A narrativa se aprofunda no vazio do decesso de Sarah introduzindo na história Mimi, a mãe, que não chega a terminar a carta que lhe escrevia, e a filha da morta, Clarissa, uma garota-problema que por envolvida que pareça em suas lições de balé, não esconde a avidez por um objetivo pelo qual lutar.

Os homens ficam à margem por um bom pedaço da trama, cabendo a Bill Paterson, na pele de Felix, acender de quando em quando as fagulhas de premente delírio como um inventor que lê Júlio Verne (1828-1905) sempre que a inspiração lhe falta, e a Rupert Penry-Jones de alguma maneira conservar na memória de quem assiste a perseverança de Sarah. Matthew, o galã possível de Penry-Jones, é um chef estrelado que sem qualquer explicação logicamente aceitável vai parar nas redondezas e, claro, é admitido no bistrô de Isabella. Mas são mesmo Celia Imrie e Shannon Tarbet as grandes atrações de “Uma Confeitaria para Sarah”, cada qual brilhando a seu tempo. No desfecho, assumidamente lacrimoso, as quatro mulheres se juntam como se num acordo para além deste plano, ideia que mata de uma vez para sempre comparações com “Um Lugar Chamado Notting Hill” (1999), de Roger Michell (1956-2021).


Filme: Uma Confeitaria para Sarah
Direção: Eliza Schroeder
Ano: 2020
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.