O filme da Netflix que encantou o mundo e que você talvez não tenha assistido Ilze Kitshoff / Netflix

O filme da Netflix que encantou o mundo e que você talvez não tenha assistido

Até parece fácil, mas vencer o determinismo biológico, geográfico e, sobretudo, político é tarefa para gente que não se espavora frente de uma sina de negligência que cruza os séculos, incita os ânimos e explica a revolta das massas, que toleram até o limite o menoscabo criminoso de quem deveria zelar por elas. Crianças tornam-se guerreiros antes do tempo na luta pela sobrevivência, buscam na pouca ciência e nas imposições da cultura a saída para problemas cuja resposta se esconde, mas clama por ser achada, não sem muita fé e muito empenho. “O Menino Que Descobriu o Vento” tem muito de conto de fada, mas é uma história real, triste, inspiradora e de excelso alcance filosófico. Surpreendentemente autoral, o filme de Chiwetel Ejiofor, versão cuidadosa da autobiografia homônima de William Kamkwamba, concebida com o jornalista texano Bryan Mealer, apresenta a história de seu protagonista com didatismo sem nunca resvalar para o tedioso, um dos predicados que lhe valeram cinco indicações a prêmios diversos, a começar pelo de Melhor Diretor, da NAACP, a prestigiosa entidade voltada à defesa dos direitos dos afro-americanos. Ejiofor, também roteirista do longa, debuta em grande estilo no comando de uma das mais necessárias produções da indústria cultural contemporânea.

A estreia mundial, no Festival de Cinema de Sundance na noite de 1º de março de 2019, foi um vendaval. Aos poucos, os críticos foram substituindo a descrença pelo entusiasmo e ficaram seduzidos pela mistura de comentário sociológico e poesia, tudo muito bem dosado no transcurso de 113 minutos em que Ejiofor contrapõe a aridez do discurso à beleza do formato, numa pletora de imagens de milharais verdes que douram a medida que as semanas passam, testemunhas dos funerais coloridos e estranhamente animados por homens equilibrando-se em pernas de pau, celebração da passagem para uma vida sem mais privações, sem mais tormento, longe da dor da fome. Enquanto não chega sua hora, Trywell Kamkwamba moureja na lida, observando a morte de perto. Já na primeira sequência, no Maláui do já nebuloso ano de 2001, cair fulminado de exaustão era comum na aldeia de Wimbe, no interior do país, tragédia a que os próprios lavradores fechavam os olhos desde que a colheita fosse satisfatória. William, o primogênito de Kamkwamba, observa tudo aquilo, e mesmo para quem conhece sua história, não é nada razoável supor que daquela cabeça sairá o plano de virada a tornar viável o progresso do vilarejo, mas o impossível é, muitas vezes, uma pedra muito mais vistosa que pesada. Conquanto não se furte a desenvolver o eixo do conflito no segundo ato, o diretor explora bem a relação do pai, vivido por ele mesmo, com seu pequeno gênio desconhecido, ora pacífica, ora pontuada por atritos severos, que Ejiofor suaviza com a dança das nuvens ralas no céu azul, poeticamente mortífera por insinuar mais outra estiagem sem tempo para acabar.

Maxwell Simba personifica como ninguém a aura de esperança por trás de seu herói. O diretor não se prolonga ao aclarar o fundamento da invenção de William — um moinho eólico para bombear água e produzir eletricidade, o que não implicaria mais no congelamento da economia da região durante a seca —, mas a vocação messiânica do garoto fica explícita no olhar penetrante de seu intérprete, síntese perfeita da tal alegria da morte que se presencia nos velórios. William Kamkwamba formou-se em Estudos Ambientais na Faculdade de Darmouth, nos Estados Unidos. Seu pai nunca saiu de Wimbe.


Filme: O Menino Que Descobriu o Vento
Direção: Chiwetel Ejiofor
Ano: 2019
Gêneros: Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.