Na Netflix, super-herói interpretado por Ben Affleck não vai permitir que você desvie o olhar nem por um segundo Divulgação / 20th Century Studios

Na Netflix, super-herói interpretado por Ben Affleck não vai permitir que você desvie o olhar nem por um segundo

Super-heróis de correntes as mais variadas, dos mais solares ao mais chegados ao mundo das trevas, têm um ponto em comum: lutam contra as memórias de uma infância triste, que, claro, ficam naquele eterno vaivém que os predispõem a se lançar a empreitadas cada vez mais arriscadas, quiçá até suicidas, visando não somente o bem da humanidade, mas um acerto de contas com sua própria vida. Também é esse o caso do protagonista de “Demolidor: O Homem sem Medo”, em que Mark Steven Johnson desdobra a jornada de Matt Murdock, um garoto sombrio criado pelo pai em Hell’s Kitchen, a Cozinha do Inferno, uma das áreas mais perigosas de Manhattan, no coração de Nova York. A Grande Maçã ficou mais e mais caótica, Hell’s Kitchen virou Clinton e Matt tornou-se um influente advogado, cuja fortuna deve-se à dedicação utópica a casos em que sabe da inocência de seus clientes, mas para empanar sua felicidade, sobrou-lhe a invencível escuridão de uma cegueira, o menor dos demônios com que se bate todos os dias.

O outro paladino das almas sofredoras criado pela DC Comics, uma espécie de Batman politicamente correto, tal como o personagem desenvolvido por Bob Kane (1915-1998) e Bill Finger (1914-1974) em 1939, também sai pela noite depois de um expediente fadigoso à procura de uma súcia de malandros, porém com um bocado mais de comedimento. Voluntariamente ou não, Johnson enche seu roteiro de alusões ao Homem-Morcego, seja na fotografia de Ericson Core, pautada por azul-petróleo e preto, seja nas decisões semânticas que toma logo de imediato, estreitando a margem para uma série de comparações. Na abertura, um rato perambulando pelas sarjetas de Nova York até ser pulverizado pelos gases tóxicos da rede de esgoto; essa imagem é, naturalmente, muito mais do que só aquilo que é mostrado, gancho para que a câmera suba pelas paredes de uma igreja, registrando os vitrais coloridos de um Jesus plácido, até voltar bruscamente, despencando no chão. O Demolidor, o “diabo da guarda”, o “audacioso”, é amparado pelo padre Everett de Derrick O’Connor, seu amigo e padrinho extraoficial, momento em que o diretor leva a narrativa para o terreno do épico e destrincha como Matt adquire seus superpoderes, depois de um acidente com resíduos tóxicos; a vida com o pai, Jack, o ex-pugilista decadente interpretado com um misto de graça e melancolia por David Keith, o amor por Elektra Natchios, a mutante vivida por Jennifer Garner, e, por evidente, o antagonismo diante de ninguém menos que o Rei do Crime, um gângster acostumado a comprar barato consciências e, destarte, aliviar sua culpa. No fundo, o Demolidor e o vilão encarnado por Michael Clarke Duncan (1957-2012) têm muito em comum, e não por acaso o embate final dos dois vale os 103 minutos de projeção.


Filme: Demolidor: O Homem sem Medo 
Direção: Mark Steven Johnson
Ano: 2003
Gêneros: Ação/Fantasia
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.