Filmaço alucinante, na Netflix, te levará para dentro dele e não te deixará piscar por 123 minutos

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O sujeito virtuoso apresentado por Uluç Bayraktar em “10 Dias de um Homem Bom” segue tentando contornar seus fracassos, reinventando-se na luta contra seus demônios. Entretanto, agora, incorporando de vez sua porção destacadamente obscura, Sadik Öcal, o protagonista do filme que inaugura a história, capta com gosto o elemento desconhecido que atraiu sua natureza para a desdita inevitável, e em “10 Dias de um Homem Mau” entrega-se à nuvem de acontecimentos sem explicação que o cerca e o obriga a tomar atitudes que até então julgava inadmissíveis.

Na continuação do jogo narrativo pleno das acrobacias retóricas de filmes assim — especialmente os turcos —, o diretor mais uma vez oferece ao público um enredo que ressanfonina acerca das misérias humanas, dispondo no centro do palco um sujeito exausto de navegar contra a maré, encontrando dessa forma seu lugar num mundo que fora-lhe desabridamente hostil até então.

Novamente tornando por base o romance homônimo de Mehmet Eroğlu, coautor do roteiro com Damla Serim, Bayraktar abusa das paisagens estonteantes do interior da Turquia já na introdução, quando um homem desnorteado em seu caminho segue por uma rodovia deserta no volante de uma caminhonete verde metálica, que capota logo depois. Banido da advocacia, Sadik torna-se o predileto do chefão, o que se nota pela presteza com que é resgatado, e a improvável jornada de regresso com os capangas vividos por Erdal Yildiz e Kadir Çermik, que quase termina de matá-lo com seus malabarismos sobre quatro rodas e depois tem de trocar-lhe a calça molhada depois de uma incontinência, é um dos poucos (mas eficazes) respiro cômicos do texto de Eroğlu e Serim.

Nejat Isler leva as pouco mais de duas horas como se preso na carapuça de rancor que impinge-lhe o novo ofício de detetive particular, em que não é um dos piores. No entanto, o caso que investigava na produção que abre a sequência, o sumiço de Tevfik, um mandachuva do crime organizado de Istambul, papel de Ata Artman, tem, claro, desdobramentos com que ninguém contava, nem mesmo Pinar, a espertíssima prostituta juvenil vivida por Ilayda Alisan — e é justamente por Pinar é que começa a busca meio insana do anti-herói de Isler por Tevfik.

Esse homem comum à primeira vista, mas que fala sozinho e bebe uísque e leite com a mesma sofreguidão, mete-se num esquema amador de roubo de carros, misturando seu rosto macilento a repartições penumbrosas, desgraçando-se cada vez mais. No encerramento, a solução ex machina do amor enfim correspondido de Sadik e Pinar não incomoda mesmo o espectador mais rigoroso, graças ao carisma do inaudito casal de pombinhos do submundo.


Filme: 10 Dias de um Homem Mau
Direção: Uluç Bayraktar
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Mistério/Policial
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.