Do topo das paradas para sua televisão: a jornada eletrizante de um deus do pop está na Netflix! Divulgação / Paramount Pictures

Do topo das paradas para sua televisão: a jornada eletrizante de um deus do pop está na Netflix!

A primeira cena de “Rocketman” tem a força de uma revelação, e essa decerto foi mesmo a vontade de Dexter Fletcher. O diretor do filme, um musical livremente (e bota livremente nisso!) inspirado na vida de Elton John — inclusive em sua passagem, breve, mas decisiva, como Reginald Kenneth Dwight, um garoto rechonchudo de Pinner, subúrbio da região metropolitana de Londres — se propõe a falar da vida e da obra de seu biografado, por evidente, mas do seu jeito, e não se contenta só com isso. Muito bem-iluminada, a sequência inicial da história colorida de um dos artistas mais prolíficos e longevos da cultura pop apresenta o músico, uma performance notável de Taron Egerton, vestido num macacão laranja cravejado de lantejoulas, adornado por asas e um par de chifres, atravessando resoluto um corredor. Depois de uma caminhada que sugere o deslocamento para um lugar alheio ao plano terreno, ele abre a porta dupla de uma sala impetuosamente, ofegando um pouco, e começa a fazer inconfidências farsescas sobre sua vida, tendo por plateia onze completos desconhecidos.

Nunca se pode deixar de ter claro que “Rocketman” dá muito mais ênfase ao lado musical que a sua natureza de registro documental, isto é, deve-se absorver tudo o que Elton John canta pela boca de Taron Egerton e rejeitar grande parte do que a narrativa vende como a trajetória do astro e a jornada do homem. Ainda nesse segmento, que conforme se vai se saber no desfecho, retrata uma fase de debacle física e moral de Elton John, Fletcher já brinca com a aura ficcional de sua biografia assumidamente romanceada — e de um kitsch saboroso — e põe nos solilóquios de sua estrela descrições de eventos que só se passaram na cabeça dele, ou aqueles que, se tivessem acontecido de fato, o teriam mantido bem longe dali, a exemplo da convivência com um pai sensível, melômano, amante do jazz (isso é verdade), que partilhava com o filho itens de sua preciosa discoteca, que dedicava-se a transmitir ao menino suas impressões a respeito da arte por horas, ou do zelo de uma mãe abnegada, que reservava-lhe uma estima sem terceiras intenções, e não visando a manter o casamento de aparências por alguns anos mais. O roteiro de Lee Hal toma o atalho fácil de defender o argumento de que a carência afetiva e a incúria dos pais fizeram de Elton John o que ele chegara a se tornar, para o bem e, sobretudo, para o mal; que a aptidão invulgar para o ofício que o tornou célebre e multimilionário — até os onze anos, quando recebeu uma bolsa de estudos para a Royal Academy of Music, Reginald sempre estudara por sua própria conta e tocava piano de ouvido, baseando-se em sua intuição poderosa sobre o que entendia das partituras — teria se originado da necessidade de se fazer notar pelo pai, Stanley, interpretado por Steven Mackintosh; bem como o vício em álcool, maconha e cocaína, nessa ordem (e, posteriormente, a compulsão por compras), seria uma resposta inconsciente ao desdém do companheiro e empresário, John Reid, papel de Richard Madden, birra leviana de uma criança mimada que nunca tivera de dar duro por coisa alguma, como a mãe do cantor, Sheila, personagem de Bryce Dallas Howard, diz ao filho adulto. Os baques de Elton John certamente ajudaram-no a se constituir o homem em que se transformara — como se dá com todo mundo, aliás —, raciocínio que também se aplica quanto a analisar sua carreira. Entretanto, em se apreendendo a trajetória de John à luz da realidade, comparando sua vida como ela é com as inúmeras possibilidades de como poderia ter sido, é elementar o propósito do artista de se tornar quem sempre fora, segundo ensinara Nietzsche, sem envolver ninguém mais nisso, uma longa caminhada por autoconhecimento em busca de uma verdade que sempre estivera ali.

É quase teratológico que Elton John tenha sido no âmago tão travado, sobretudo no princípio da carreira, marcada pelos figurinos espalhafatosos — quiçá este fora o jeito que encontrara para se fazer descobrir, ocultando-se em seu reverso, no que queria ser. Essa personalidade de segredos controversos vai sendo minuciosamente decifrada pelo público com a ajuda do gênio de Egerton. O ator vem se mostrando um intérprete maneável, transitando sem dificuldade entre drama, comédia e ação, convencendo, de acordo com o que se assiste em “Rocketman”, quando é desafiado a cantar ou a dedilhar melodias ao piano. Egerton proporciona ao espectador momentos inesquecíveis, como o que registra a confecção de “Your Song”, em 1971, no fim do primeiro ato, para a audiência inaugural de seus tantíssimos shows a partir daquela hora tão solene: a mãe; a avó Ivy, da veterana Gemma Jones, figura central na consolidação de Reginald como indivíduo e como artista; e Bernie Taupkin, seu parceiro de trabalho, interpretado com leveza por Jamie Bell, desaguadouro de um amor platônico (mas sincero) que Elton John, profissional até o osso, soube capitalizar para os palcos.

As comparações com outras produções do gênero — a exemplo de “Bohemian Rhapsody” (2018), também comandado por Dexter Fletcher após a demissão de Bryan Singer por “comportamento errático”, leia-se absenteísmo, ou vadiagem mesmo — são inevitáveis. A cinebiografia de Freddy Mercury (1946-1991) — como Elton John um artista espantosamente talentoso e de excentricidades semelhantes —, líder do Queen, usa de muito mais realismo quanto a eternizar a história do vocalista de uma das bandas de rock britânicas mais relevantes de todos os tempos. Contudo, ao optar por um enredo desabridamente imaginoso, em “Rocketman” Fletcher esclarece que está tratando da vida de Elton John, mas também de algo maior. No filme, o diretor se fundamenta na persona de Elton John como grande expoente da arte de seu tempo, com os trechos musicais como o ponto mais alto de seu projeto.

“Rocketman” acaba quase como começou, valendo-se de uma analepse que mostra a redenção de seu protagonista depois do inferno das drogas, ao passo que entoa “I’m Still Standing”, um de seus grandes sucessos. Composta em 1983, justamente na quadra de sua vida em que se preparava para voltar com tudo, o hit retrata com toda a fidedignidade o quão complexa pode ser a vida de um dos músicos mais admiráveis que a humanidade já viu, mas que parecia querer muito pouco, talvez só ser um dono de casa aplicado, com marido e filhos de quem se ocupar. Como também queria Freddy Mercury.


Filme: Rocketman
Direção: Dexter Fletcher
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Biografia/Musical
Nota: 8/10