Distopias têm um caráter quase pedagógico. É mediante essas histórias delirantes, inverossímeis, farsescas, não raro patéticas, que chegam aos olhos e ao coração de muita gente verdades imperscrutáveis até o momento em que filmes como “Spiderhead” vêm a público. Malgrado derive sobre um tema colateral — as belas e perigosas emoções que orientam a jornada de nós todos —, o longa de Joseph Kosinski, diretor do aclamado “Top Gun: Maverick” (2022), também toma por centro a vontade destrutiva e autodestrutiva do homem quanto a melhorar os ambientes em que se insere, a sociedade de onde surge, sua própria biologia e seu jeito mesmo de pensar e refletir o mundo em seu entorno e, como dissera Schopenhauer passados dois séculos, só o que consegue é deitar tudo a perder, justamente por sua incapacidade essencial de fazer a escolha certa. Por quase sempre se guiar por seus próprios desejos, por seus próprios impulsos, por sua própria vontade, elegendo-os em detrimento da razão — e ainda que haja as escassas circunstâncias em que a priorize, assim mesmo o homem encontra um meio de subvertê-la em nome de suas idiossincrasias —, é que o homo sapiens é e continuará a ser a espécie mais desditosa de todos os tempos.
Kosinski destrincha em linguagem cinematográfica o texto do americano George Saunders, autor do conto “Escape From Spiderhead” (“fuga de Spiderhead”, em tradução literal, sem edição em português), publicado em 2010, sobre um centro de pesquisa onde detentos aquiescem em se tornar cobaias para a elaboração de um novo medicamento, voltado a suprir a falta de emoção na vida de pessoas sem mais nada que as possa lembrar que viver é, também, sentir. Por trás de intenções tão aparentemente inócuas, quiçá abnegadas e salvíficas, há, claro, o propósito oculto (mas nem tanto) de, num futuro próximo, domar a conduta dos menos obedientes e manter seus ímpetos sob implacável vigilância.
Aludindo a “1984”, a profética obra-prima de George Orwell (1903-1950), os personagens estão sempre na mira rigorosa de câmeras, que flagram tudo, em especial quando se submetem, voluntariamente, às experimentações de Steve Abnesti, o milionário que patrocina toda a loucura e a comanda ele mesmo, com mãos de ferro. Numa tentativa desesperada de outra vez merecer papéis dramáticos e, afinal, elevar sua carreira a um pavimento superior — como quase fizera cerca de uma década antes em “Rush — No Limite da Emoção” (2013) —, Chris Hemsworth, está confortável no pele desse antagonista estranho e diabolicamente charmoso, a exemplo do que se viu no filme de Ron Howard, conseguindo até empanar o bom trabalho dos coadjuvantes e, esticando-se a corda, transcendendo o próprio enredo, boa adaptação da pena de Saunders, infilmável por natureza, mas bem roteirizada por Rhett Reese e Paul Wernick. Obedecendo a uma sequência de 25 testes, prosaicamente organizados numa cartela de bingo — aqui se faz necessária uma dose generosa de licença poética do respeitável e indulgente público —, falta a Abnesti experimentar apenas a substância denominada N40, a que encarna a possibilidade de comercialização de uma droga que levaria as pessoas a conhecer os riscos ternos do amor. Os trabalhos, que contam com a indispensável participação de Jeff, vivido por Miles Teller, avançam sem maiores obstáculos, até que Heather, de Tess Haubrich, resiste mais do que se poderia esperar. Esse era o gatilho que ainda faltava por ser disparado a fim de que o personagem de Teller encerrasse sua permanência na equipe; no vácuo desse movimento, se aproxima de Lizzy, interpretada por Jurnee Smollett, por quem se interessa sem a necessidade de quaisquer artifícios.
Kosinski é um dos realizadores de carreira mais auspiciosa em sua geração, e o complexo e divertido “Spiderhead” só valida ainda mais tal juízo. Amalgamando a direção de atores ao manejo de efeitos visuais para ninguém botar defeito, o filme reivindica, no mínimo, o epíteto de perturbador. Aqui, uma sequência viria a calhar.
Filme: Spiderhead
Direção: Joseph Kosinski
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Ficção científica/Mistério
Nota: 9/10