Encantador e adorável, filme com Kirsten Dunst, na Netflix, é um afago na alma Divulgação / Columbia Pictures

Encantador e adorável, filme com Kirsten Dunst, na Netflix, é um afago na alma

A vida do homem é perpassada por tragédias desde o princípio dos tempos, e a especulação de como certos episódios poder-se-iam ter dado, mais que delirante, chega a ser apenas pueril em algum momento. Trancamo-nos no mais fundo de nós mesmos, fechando os olhos à realidade, que quase sempre insuportável, inspira-nos justamente esse gosto pela fantasia, um lugar mágico, impenetrável, onde mora a certeza de que nenhum pedaço da feiura da vida nos há de afligir. Passa-se muito tempo até que nos persuadamos da necessidade de se aceitar a vida como ela é, para que vençamos o cansaço, o desalento, o enfaro de tudo e consigamos fazer da revolta, a última borra do tacho, um capital realmente valioso. Efemérides políticas e sociais não raro são tomadas à luz de genuínos enigmas: nada do que vai ali tem o menor significado, a não ser por seu aspecto grandiloquente de festa, edulcorado pela presença de fanfarras, de discursos persuasivos em tom pomposo, de homens em uniformes respeitáveis. Mas mesmo as melhores festas não duram para sempre.

Há pelo menos uma gota de sangue em cada oceano revoltoso das mais variadas formas de amor e de política, frentes de um exército em comum, tentáculos de um mesmo monstro. A humanidade continuamos inamovíveis naquele que parece ser nosso projeto maior: ser nosso próprio lobo, avançar sem qualquer traço de misericórdia sobre aquele que deveria ser o coroamento do projeto máximo de civilização, que para ser considerado como tal, jamais pode afastar-se dos ideais positivistas de Auguste Comte (1798-1857). Revoluções verdadeiramente populares e efetivamente justas se dão a partir de um movimento organizado e sistêmico, natural, em que camadas plurais da sociedade, o que se convencionou denominar de maneira genérica — e um tanto displicente — de povo, juntam-se, com ORDEM e pela ORDEM, a fim de reivindicar a concretude de suas demandas numa sucessão de etapas, tudo a seu tempo e com a devida observância das leis, num desenrolo para alguns arrastados demais, mas possível. A evolução conseguida com essa pletora de miúdas transformações sociais determina, afinal, o PROGRESSO de uma nação, modelo civilizatório inacabado por natureza e que só poderá vir a sustentar-se caso o resultado perfeito, o AMOR, dos cidadãos por sua pátria, pelas instituições que a representam e fazem-na deixar sua inércia fundamental e uns pelos outros, conscientes de que brotaram de um único solo, que lhes dá o pão e o abrigo.

Nascido nove anos antes da eclosão do primeiro evento histórico a sacudir a França desde o Iluminismo de Voltaire (1694-1778) e Montesquieu (1689-1755) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o menino Auguste presenciou o lumiar de um novo tempo em seu país com a derrocada do ciclo de monarquias absolutistas iniciado três séculos antes. Sofia Coppola elege um personagem central nessa narrativa — acatando os critérios que fazem-na uma das diretoras mais perspicazes e inventivas do cinema contemporâneo. Biografia romanceada (e mesmo imaginada) do que se tornou um ícone da beleza, do arrojo, da oxigenação dos costumes, mas também do desarranjo do poder, da desídia com a opinião pública e, o principal, do menoscabo com o tal povo, que pagava a conta de seu fausto e o de seu séquito de bajuladores, “Maria Antonieta” passeia pela figura de uma das mulheres mais influentes do seu tempo, compondo um retrato alternativo, mas verossímil, da mulher e do mito.

O dinamismo de Kirsten Dunst é perfeito para que se faça crível um personagem que vai apresentando e desenvolvendo lados de sua personalidade que Dunst leva a crer que a própria futura rainha consorte da França não conhecesse em si. Coppola e sua atriz principal traduzem a solidão essencial de Maria Antonieta (1755-1793) — desde a saída da Áustria, em 1769, aos catorze anos, para contrair núpcias com Luís 16 (1754-1793), de Jason Schwartzman, seu primo distante, neto do Rei Sol Luís 14 (1638-1715), até sua morte, aos 38 anos incompletos — não para tentar alguma justificativa para a leviandade de déspotas que parasitam cidadãos comuns (o que seria impossível), mas para dar profundidade dramática a uma mulher de início sensível, mas gradativamente tomada pela letargia nefasta dos desmandos que ajudou a perpetrar. Não sem justiça, seu nome cristalizou-se como a da mulher frívola e cada vez mais cínica que se conformava com um casamento infeliz, desde que nunca tivesse de responder pelos arroubos de um consumismo descontrolado.

Coppola dota seu filme das referências pop que ainda hoje desperta polêmicas invencíveis — e em dados momentos, “Maria Antonieta” parece mesmo um clipe de Lady Gaga —, mas há lances realmente magistrais em seu trabalho. O final trágico, por óbvio, fica restrito à bela imagem da destruição do quarto em Versailles quando da queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789, marco inicial da Revolução Francesa, que dá cabo do Velho Regime, e da rainha e do rei quatro anos depois. Essa metáfora do caos do estar no mundo, que assalta também os donos do poder de quando, cai como uma luva em tempos de barbárie e falsos rebeldes.


Filme: Maria Antonieta
Direção: Sofia Coppola
Ano: 2006
Gêneros: Romance/Drama/Biografia
Nota: 9/10