Pessoas realmente célebres se reconhecem fracas, à mercê de um sem fim das muitas intempéries da vida, como se a alma jamais se satisfizesse com um único corpo e penasse em busca do lugar exato para, afinal, existir. Aqueles que sempre se reconheceram na própria vida dificilmente conseguem entender uma parte fundamental da vida de Elizabeth Bishop (1911-1979), contada por Bruno Barreto em “Flores Raras”. A poetisa americana que atracou no Rio de Janeiro em 1951 parecia mesmo uma gigantesca embarcação cujo casco já começava a se ressentir das pancadas cada vez mais duras em rochedos de um oceano adverso em que não se encontrava mais, ávida por terra firme e acolhedora, como na certeira analogia elaborada pela jornalista e dramaturga americano-brasileira Marta Góes no título de seu livro. A cinebiografia de Barreto zarpa desse ponto, desmembrando a longa jornada de descoberta, autodescoberta, superação, dúvidas, respostas, mais dúvidas e a dupla epifania que a aproximou do Pulitzer, conquistado um lustro depois, em 1956, e a empurrou para uma paixão intensa, insana, lentamente transformada num amor dialético, submetido a provações físicas, psicológicas, culturais, mas que, ao cabo de um fecho desditoso, provou-se verdadeiro.
Sabiamente, o roteiro de Carolina Kotscho e Matthew Chapman incorpora o justo espírito de “Flores Raras e Banalíssimas: A História de Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop” (1995), o romance biográfico de Carmen L. Oliveira, e se fixa no renascimento da poetisa no Brasil, depois de um prazeroso batismo na Baía de Guanabara. Bishop deixa sua Worcester natal, na Massachusetts do começo dos anos 1950, como se alguma coisa a puxasse para o Rio, capital do país do futuro, na pena muito mais cínica que laudatória do austríaco Stefan Zweig (1881-1942), outro fluminense por adoção, também autoexpatriado, por motivos diametralmente opostos e muito menos íntimos. Há algum tempo, Bishop lutava com as palavras e com atávicas elucubrações, perseguindo a redação final de “One Art” (1976), poemas em que fala de perdas, ressentimentos, a inutilidade de se esperar do mundo e das pessoas o que não podem dar, e que nada disso nunca foi nenhuma tragédia. Ela está em Nova York quando aceita o convite de Mary, uma ex-colega de classe do Vassar College, uma das mais renomadas instituições no ensino de artes nos Estados Unidos, para uma temporada no Éden particular em que vive com a companheira, a arquiteta Maria Carlota Costallat de Macedo Soares (1910-1967), a Lota. Não há muita surpresa quanto ao que se ao termo de alguns dias de convivência entre as três mulheres, bonitas cada qual a seu modo, endinheiradas, cultas e presas de uma carência afetiva patológica, com Tracy Middendorf fazendo de Mary o retrato fiel da doçura e da submissão a Lota, uma personalidade em tudo masculina, a despeito de preferências de alcova. Barreto não é capaz de fragmentar o cômodo monólito nas figuras de Lota, Bishop e Mary, nessa ordem; depois da inevitável separação, Glória Pires, como já se esperava, dá, enfim, substância dramática a sua personagem, ora deixando-se pentear pela nova amante, ora surgindo quase tão majestosa quanto os titânicos postes do Aterro do Flamengo, sua obra máxima, sob os auspícios de Carlos Lacerda (1914-1977), o então governador do estado da Guanabara, extinto em 1975. Mesmo assim, Miranda Otto é mesmo a grande estrela de “Flores Raras”. Otto transmite com toda a segurança a agonia existencial de Bishop, enredada em si, deixando-se tomar pelo alcoolismo crônico, mas torcendo a protagonista a seu gosto, de onde, vez ou outra, pinga uma gota do mel-fel da poetisa, a certa altura hospitalizada por ter experimentado de um fruto proibido — essa talvez seja a metáfora perfeita para defini-la.
No último domingo, andando pela rua Francisco Otaviano de madrugada, aquela bruma densa remeteu-me à Nova Inglaterra. A praia de Ipanema era uma fabulosa herdade, deserta e improdutiva, que eu cruzava em meu cavalo imaginário, e que era toda minha. Elizabeth Bishop deve ter tido sensação parecida quando chegou ao Rio.
Filme: Flores Raras
Direção: Bruno Barreto
Ano: 2013
Gênero: Romance/Drama
Nota: 8/10