A fotografia luminosa de “De Frente” dá a agradável sensação de se estar diante de um noir à George Waggner (1894-1984) devidamente remasterizado. O feito de Yash Khanna torna especialmente notável a sequência inicial do filme de Malik Nejer, sócio do Myrkott, um estúdio famoso na Arábia Saudita pela série de desenhos animados Masameer, quando dois homens, um gordo de camisa florida, e um magro vestido muito sobriamente com uma túnica marrom, descem de uma caminhonete velha, em cuja carroceria encontram três sujeitos com sacos de papel na cabeça. São reféns, que devem ser trocados por alguém a que os dois ocupantes da picape chamam de rei, o Rei de Ouros, mantido prisioneiro na Rússia ao longo de duas décadas que seus algozes fizeram parecer-lhe um século. A hostilidade no ar é ainda mais espessa que a bruma assustadora que cobre o descampado onde ocorrem as negociações. Nejer certamente se vale de sua larga experiência com o universo das narrativas protagonizadas por seres inanimados para emprestar a seu filme, o primeiro com atores de carne e osso, a justa dose de fantasia e crua verdade num Oriente Médio em tudo parecido com as tramas de magos de tempos imemoriais, urdidas exatamente como os tapetes persas em que viajavam de uma época a outra.
Tony Botros Al-Mesih, o tal Rei de Ouros, vai perdendo espaço para Darwish e Riyadh, os impagáveis tipos encarnados por Adel Radwan e Abdulaziz Alshehri, dois taxistas da Sheikh’s Chauffeur que pegam por engano o personagem de de Mohammad Alqass, um conhecido gângster de Bathaikha, uma metrópole fictícia na Ásia Ocidental, que faz justiça ao sobrenome com as ações de filantropia que garantem a manutenção e o alargamento de seus domínios. A história, claro, não demora a chegar aos ouvidos do filho de Al-Mesih, o Valete de Ouros, que em resposta sequestra dois amigos de Darwish e Riyadh. O roteiro de Abdulaziz Almuzaini e hábil em explorar cada ínfima possibilidade cômica, botando os motoristas no cativeiro imundo, mas aconchegante, numa reviravolta muito bem conduzida, em que os dois surgem usando patéticos gorros, de dinossauro e de tricô rosa-choque, aguardando o resgate, que por seu turno se materializa numa subtrama que não deve em nada ao mote central. Pode até parecer de somenos importância, mas este é verdadeiramente um feito de Almuzaini e Nejer, que não se deixam levar pelo espírito da comédia mais inocente, quase pastelão, captado pela dupla de atores principais. Diálogos, as expressões faciais de Radwan e Alshehri, a forma como aparecem sempre, numa sintonia tão autêntica, todas essas filigranas levam “De Frente” ao nível de uma produção à que Hollywood deve atentar mais. O desfecho, com um assassinato que abre caminho para um amor resiliente como os beduínos, confirma: a indústria cinematográfica saudita, processo iniciado em 2016 por “Barakah com Barakah”, de Mahmoud Sabbagh, ainda tem muitos véus a rasgar.
Filme: De Frente
Direção: Malik Nejer
Ano: 2023
Gênero: Comédia/Suspense
Nota: 9/10