Família, neuroses e Nicole Kidman: o filme encantador que você precisa assistir na Netflix Divulgação / WireImage

Família, neuroses e Nicole Kidman: o filme encantador que você precisa assistir na Netflix

Ao longo da brilhante carreira, Noah Baumbach foi se destacando como um dos mais argutos observadores da intimidade familiar. Em “Margot e o Casamento”, Baumbach persevera na arte de expor as neuroses, as falsas alegrias, os medos, os traumas, mas também as (poucas) situações de júbilo sincero de gente que divide o mesmo sangue e boa parte da vida, o que já fizera mais denodamente em “A Lula e a Baleia” (2005) e continuou a fazer em “História de um Casamento” (2019), dois de seus grandes triunfos no cinema e na sátira de costumes. O roteiro, uma das especialidades do diretor, põe a limpo os mal-entendidos na relação de duas irmãs, ao passo que também investe na confusão quando a narrativa o exige, o que cria um deleitoso movimento de avanço e retrocesso no qual o espectador chega a não saber o que pensar. Filho de Jonathan Baumbach (1933-2019), um reconhecido teórico da literatura, e de Georgia Brown, crítica de cinema do jornal “The Village Voice”, fora de circulação desde 2017, o diretor suaviza a variante intelectual da equação e aposta mesmo no contraste, deixando fermentar a dúvida sobre se não estaria reabrindo feridas íntimas demais, outra prova da bravura de sua arte.

É novamente um matrimônio o gatilho de que Baumbach se vale para girar a manivela central da imensa engrenagem que é o filme, espécie de obsessão branca que, de pouco em pouco, vai fazendo sentido, como também se dá em seus trabalhos anteriores. Margot, uma escritora talentosa, mas inconstante, acha de reencontrar a irmã mais velha, Pauline, com quem deixara de falar há anos, justamente no dia do casamento dela, nada menos que uma temeridade. A primogênita mora de favor numa propriedade da família em Long Island, sudeste do estado de Nova York, com Ingrid, a filha interpretada por Flora Cross, de um relacionamento que nunca passou de uma noite de sexo fortuito no fim da adolescência, parece segurar as pontas com um auxílio da seguridade social, mas como desgraça pouca é bobagem, resolve que não pode mais arcar com o sufocante peso de anos de escolhas infaustas sozinha. Até aí, morreu Neves; o problema mesmo é que o postulante a consorte em sua tragédia recorrente é Malcolm, um vagabundo sem ocupação definida incapaz de colocar um níquel em casa, não obstante empenhe-se por até uma semana na redação de cartas ao editor do jornal da cidade. A certa altura dos 93 minutos, o diretor-roteirista inclui uma discussão um tanto superficial sobre autismo, endereçada a um outro personagem, mas ninguém personifica melhor esse caos interior, tão violento que não raro extravasa para as interações (ou o mais próximo disso) com os outros que o personagem de Jack Black, ora divertido, ora suscitando uma sincera pena de quem o cerca e do público. Ainda no primeiro ato, Baumbach dispõe de um bem-sacado nonsense para dimensionar quão estreita é a cumbuca em que Pauline está prestes a enfiar a mão, no diálogo em que Malcolm explica à futura cunhada, que fora apanhar na estação de trem, por que usa bigode, e quiçá essa seja a sequência mais importante do longa, embora aparentemente vesana e demasiado curta.

O diretor reserva para o meio do segundo ato a verdadeira razão da insistência de Margot em legitimar a farsa do conúbio de Pauline, mais uma vez monopolizando as atenções do jeito mais torto. Enquanto isso, Nicole Kidman e Jennifer Jason Leigh enchem os olhos da audiência numa esgrima intelectual que chega também ao corpo, exploradas até a última gota de suor por Baumbach em cenas que demandam um condicionamento físico razoável. No fim, como era se prever, “Margot e o Casamento” é mesmo sobre a irmã mais nova e seu pendor doentio a tentar corrigir o mundo enquanto seu telhado desaba-lhe em cima. Mas ela literalmente corre atrás do prejuízo.


Filme: Margot e o Casamento
Direção: Noah Baumbach
Ano: 2007
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.