O melhor suspense da Netflix (e é possível que você ainda não o tenha assistido) Divulgação / Netflix

O melhor suspense da Netflix (e é possível que você ainda não o tenha assistido)

Oriol Paulo se destaca como um dos cineastas espanhóis mais bem-sucedidos da contemporaneidade. Seu perfil criativo e produtivo tem ganhado destaque nos últimos anos, abrangendo o desenvolvimento de roteiros, a direção e a produção de uma diversidade de filmes e séries aclamados pela crítica. Sua obra engloba títulos significativos como “O Corpo”, “Durante a Tormenta”, “Um Contratempo” e a série “O Inocente”, que são testemunhos eloquentes de seu sucesso profissional. “As Linhas Tortas de Deus”, baseado na obra literária homônima de Torcuato Luca de Tena publicada em 1979, é mais uma demonstração do seu talento singular.

Para escrever o livro, o autor passou algumas semanas em um manicômio na região de Santiago de Compostela, que mais tarde veio a ser alvo de investigações por acusações de abusos físicos e mentais contra pacientes. O que não era, especialmente naquelas décadas, algo incomum em instituições psiquiátricas de todo mundo, inclusive no Brasil, como já pudemos constatar em “Bicho de Sete Cabeças”.

Na história de Tena, assim como no filme de Oriol Paulo, temos um exemplo de violência nesse sentido, de abuso emocional. Acompanhamos a protagonista Alice (Bárbara Lennie), uma detetive particular que finge estar louca para ser internada e investigar a morte de um homem dentro de uma instituição psiquiátrica. Ela teria sido contratada pelo próprio pai da vítima para saber o que se passa por trás dos muros do lugar. Para que Alice pudesse averiguar de maneira mais sorrateira e aprofundada possível, ela conta que arquitetou, junto com seu contratante, uma maneira de se passar por uma pessoa mentalmente instável.

Ao adentrar na unidade, ouvimos que ela é formada em Química e que tentou matar seu marido envenenado por três vezes e que, por causa disso, ele optou por interná-la. Depois, Alice esclarece que seu relacionamento com o esposo nunca teve conflitos e que ela nunca tentou realmente matá-lo, e que todo seu perfil de insanidade foi criado para que ela pudesse acompanhar, de dentro do manicômio, os mistérios envolvendo a tal morte. No entanto, quanto mais Alice tenta se explicar, mais absurda e fantasiosa parece sua história para os médicos da instituição, fazendo com que o diretor do hospital a mantenha sempre sedada e a impossibilitando de manter qualquer contato com o mundo exterior.

É inevitável sentir com Alice a angústia e a claustrofobia de estar presa em um manicômio sem realmente ser louca. Conforme a história avança, ela consegue aliados, como os psiquiatras Cesar Arellano (Javier Beltrán) e Montserrat Castell (Loreto Mauleón), além dos pacientes, os gêmeos Rômulo e Remo (Samuel Soler) e Urquieta (Pablo Derqui).

Enquanto acompanhamos a tortura vivida por Alice em sua tentativa de provar sua estabilidade mental, o espectador se contorce, fica confuso, agoniado, rói as unhas, morde os dedos e não acredita nos próprios olhos. Afinal, a cada hora uma nova versão da história nos é apresentada e nos negamos a enxergar que Alice não é quem realmente diz que é, já que várias provas vão atestando contra o diretor da instituição, que recebeu um cheque gordo para mantê-la como paciente, e o marido de Alice, que esvaziou sua conta bancária e sumiu no mundo. Além disso, ela é perfeitamente articulada, parece bem consciente de suas ações e, apesar de sua história mirabolante de se fingir de doida para investigar um suposto crime, ela parece raciocinar com clareza e organizar ideias que fazem algum sentido.

Mas há algo de mais profundo neste enredo. Afinal, vemos algumas metáforas associando-a à “Alice no País das Maravilhas”. Ela não reconhece o pai do homem que morreu e que teria a contratado para investigar o crime. Alice é paranoica, narcisista e manipuladora. Nosso cérebro parece dar nós a cada nova reviravolta que é apresentada neste enredo e as atuações são tão formidáveis, especialmente de Bárbara Lennie, que levou o Prêmio Goya para casa, que é impossível não cair como patinho em cada peça que é pregada pelo filme no nosso cérebro. E, mesmo em seu desfecho final, é necessário respirar fundo e tentar repassar os últimos diálogos. Foi isso mesmo que vi? Foi isso que ouvi? O que acabou de acontecer? São estes alguns dos questionamentos que gritam nos ouvidos da mente, enquanto queremos que o roteiro faça algum sentido para nós.

“As Linhas Tortas de Deus” é mais uma obra magistral de Oriol Paulo, que tem a elegância e erudição de um Arthur Conan Doyle para manipular as peças do tabuleiro e jogar com a mente do público. No quesito ludibriar, ele não brinca em serviço e usa verdades para enganar os ingênuos. Afinal, Alice caiu mesmo na toca do coelho e está tendo alucinações? Ou ela é vítima de uma conspiração covarde que pretende aprisioná-la em um manicômio para o resto da vida? Nem todas as perguntas são respondidas e nem todas as pontas se amarram no fim e, se isso te incomoda, você pode terminar este filme mais maluco que qualquer outra pessoa que tenha visto na tela.


Filme: As Linhas Tortas de Deus
Direção: Oriol Paulo
Ano: 2022
Gênero: Thriller/Psicológico/Suspense
Nota: 10/10

Fer Kalaoun

Fer Kalaoun é editora na Revista Bula e repórter especializada em jornalismo cultural, audiovisual e político desde 2014. Estudante de História no Instituto Federal de Goiás (IFG), traz uma perspectiva crítica e contextualizada aos seus textos. Já passou por grandes veículos de comunicação de Goiás, incluindo Rádio CBN, Jornal O Popular, Jornal Opção e Rádio Sagres, onde apresentou o quadro Cinemateca Sagres.