Em “A Chegada”, um suspense psicológico com várias interseções com a ficção científica que o consagrou, o franco-canadense Denis Villeneuve imprime sua assinatura numa produção burilada até que venha à superfície sua essência de autêntica obra-prima. O estranhamento inaugural — e que perdura ao longo de quase toda a exibição — com as passagens em que Villeneuve recheia o texto de Eric Heisserer de tomadas entre assustadoras e epifânicas, todas oníricas, expressões do mais oculto do subconsciente, vai sendo assimilado exatamente dessa maneira, natural, orgânica, ainda que em proporções distintas, na vida de cada um. O instinto de sobrevivência; o apego à matéria; as comodidades de uma economia hipertrofiada; e a urgência do homo sapiens de dominar e manifestar essa hegemonia passam a ter um rival à altura, e pior, um rival muito mais poderoso, que nos observava desde o princípio dos tempos e, mais importante, a respeito do qual nada se sabe.
Se toda história dispõe de começo, meio e fim, é lógico pensar que o mesmo se dê com a Terra — e com o próprio universo —, e, quiçá, tudo se reinicie de outro modo. Os estudos de Albert Einstein (1879-1955) acerca do tempo e as diferentes posturas dos corpos diante do deslocamento da luz e da ação gravitacional, base científica para a formulação da célebre Teoria Geral da Relatividade, em 1905, podem explicar o frenesi da humanidade quanto a subjugar a passagem dos anos a seu talante. Tomando-se os postulados de Einstein em sua constituição pura, seria possível, até sem muita dificuldade, recompor a ordem cronológica dos acontecimentos, sem limites, segundo as necessidades do homem, o que Stephen Hawking (1942-2018) ratificou com suas pesquisas sobre o espaço-tempo e a radiação dos buracos negros, onde a luz se desintegra e metamorfoseia-se em novas fontes de energia e uma força ineditamente poderosa, capaz de, como previra o alemão sete décadas antes, empurrar tudo quanto existe para o limbo onde a vida recomeçaria. À Teoria de Tudo do britânico, assunto do lindo filme homônimo dirigido por James Marsh em 2014, e às descobertas de Einstein, a neurolinguista Louise Banks aplica seus conhecimentos no intuito de estabelecer uma nova modalidade de comunicação, inteligível por todas as criaturas. Nas cenas de abertura, depreende-se que seu trabalho, nitidamente obsessivo, é o que não a deixa sucumbir à morte da filha Hannah, e Amy Adams responde pelas passagens mais tensas e comoventes do longa. A partir do segundo ato, quando seres interplanetários já se consideram em casa e teimam em permanecer nas Grandes Planícies de Montana, no oeste americano, a doutora Banks é chamada a intervir, ensinando-lhes o inglês e tentando aprender a linguagem dos invasores, precisamente como acontece na educação de uma criança. Nessas horas, o diretor bombardeia a protagonista com as memórias que deixam-na às raias da insanidade, aproveitando para pontuar a narrativa com os elementos que justificam a fixação de Einstein, Hawking e, por óbvio, da própria personagem de Adams, relacionados ao nome da filha perdida.
Esse refinamento de Villeneuve de levantar pontes entre tópicos à primeira vista ilhados num oceano de retórica confusa volta-se para a física ao passo que também fala às emoções mais primitivas do gênero humano. Louise Banks quem sabe tenha a chance de viver o que não pôde com Hannah, fazendo com que sua história tenha um novo começo de onde foi interrompida com violência, mas a despeito dessa etérea possibilidade, é contemplada com uma promessa de ventura ao lado do colega Ian Donnelly, encarnado por Jeremy Renner. Para além de tudo isso, “A Chegada” é também um filme de amor.
Filme: A Chegada
Direção: Denis Villeneuve
Ano: 2016
Gênero: Ficção científica/Thriller
Nota: 10