Extravagante e cínica, obra-prima de Pedro Almodóvar está na Netflix e pode ser que você ainda não tenha assistido Divulgação / A-Film Distribution

Extravagante e cínica, obra-prima de Pedro Almodóvar está na Netflix e pode ser que você ainda não tenha assistido

Pedro Almodóvar tornou-se, com justiça, uma das grifes mais sofisticadas do cinema. Ao longo de quase meio século de carreira, o diretor espanhol tem se destacado por apresentar enredos que acabam por sacudir os alicerces do estabelecido, o que nunca é demais. Em se tratando de um artista excepcionalmente irrequieto e criativo como poucos, poder-se-ia imaginar que Almodóvar encontra chifre em cabeça de cavalo, inventando polêmicas que resultam artificiais e, pior, ultrapassadas entre gente habilitada a falar e fazer tudo o que lhe vem à cabeça em sociedades que parecem não se chocar com mais coisa alguma. Mas o tempo prova que o mestre tem razão.

O enredo de “Má Educação” (2004) segue à risca o protocolo almodovariano de colocar às escâncaras todo o puritanismo fajuto das relações humanas — o que, por muitas vezes, envolve instituições cuja solidez remonta às origens da civilização como a conhecemos, caso da Igreja católica, ainda que o problema que o diretor queira denunciar se refira a membros dessa Igreja, homens dotados de informação e livre arbítrio, portanto —, passando por temas como sexualidade, política, costumes e fé. “Má Educação” abrange essas grandes obsessões de Almodóvar num filme rico e prazeroso, em que todo comentário, toda cena, cada fala que sai da boca de um personagem não é gratuita.

Almodóvar é hábil em jogar com as emoções do público, propondo um jogo duplo, em que os personagens adivinham os pensamentos uns dos outros, mas são incapazes de avançar sobre as intenções do diretor, que sabe a hora exata de atear fogo ao circo. Só resta ao espectador deixar-se conduzir, inocentemente, feito uma criança — e a inferência, num filme como “Má Educação”, soa desabridamente perigosa. A beleza dos cenários, a densidade dos tipos que se vão revelando, a paranoia nascida do que não se ousa dizer, o sexo (sim, o sexo!) se encarregam de manter a audiência a uma distância segura do que a história pretende, alternando escândalo e sobriedade, sisudez e escárnio. Mas só até o momento em que o dono da história resolve jogar tudo para o alto.

Traçando um paralelo com sua própria realidade, com seu próprio universo, em “Má Educação” Enrique, vivido por Fele Martinez, cineasta em ascensão, é surpreendido com a visita de alguém que se apresenta como Ignacio, ansioso por lhe mostrar uma história que escreveu e que acredita que daria um bom filme. Enrique decerto recebe propostas de dezenas de aspirantes a atores e roteiristas todas as semanas e já estava pronto a dispensar Ignacio, mas como o novo candidato a artista é um ex-amigo de infância — e sua primeira paixão de adolescência —, resolve lhe dar atenção. O texto faz referência justamente a uma experiência que os dois viveram quando alunos internos de um colégio católico, momento em que Ignacio se submeteu ao grande ultraje de sua vida para livrar o amigo de um castigo injusto. A partir de então, como diz numa passagem da trama que apresenta a Enrique, reproduzida com destaque por Almodóvar, sua vida estava cindida em duas e as coisas para ele nunca voltariam ao que já haviam sido.

Almodóvar é um paranoico assumido, com o melhor que isso pode significar. Sua visão pouco auspiciosa da vida e, especialmente, da sexualidade, sempre propensa a seus incontáveis desvios, é encarnada por Ignacio, uma composição precisa de Gael García Bernal. Depois de se assistir a “Má Educação” por mais de cinco vezes nos últimos dezoito anos, é possível dizer sem margem para dúvidas que o personagem de García Bernal se presta ao papel de alter ego do diretor, não somente contando a história, mas também fazendo questão de imiscuir-se nela, ressaltar os pontos de vista para os quais quem assiste deve atentar e mesmo modificar a narrativa em alguma proporção, tornando-a mais ácida. O autorretrato de Almodóvar é ainda evidente ao se tomar conhecimento do fato de que Ignacio não é quem diz ser, ou seja, é um impostor que se vale de uma situação particularmente dolorosa a fim de obter alguma reparação. Como em “A Lei do Desejo” (1987), Almodóvar se utiliza de um personagem confessamente dúbio para promover a redenção de um tipo marginal.

Zombando de todas as convenções que lhe aparecem pelo caminho, o diretor ainda põe o dedo em feridas mal curadas do regime fascista do ditador espanhol Francisco Franco (1892-1975), quando diversas condutas dos personagens de “Má Educação” eram tipificadas pelo Código Penal então vigente. O filme atinge a condição, rara em nossos dias, de ser erótico, mas nunca pornográfico, com insinuações o tempo todo, como quando Enrique e Ignacio se masturbam pensando numa diva da tela grande no Cine Olympo durante os anos de internato, ou no banho de piscina do personagem de García Bernal — que prefere ser chamado de Ángel depois de adulto —, de cueca branca. Sexo é, sim, um componente de peso na história, contudo importa muito mais o antes e, principalmente, o depois.

Ainda reservando espaço para uma subtrama de travestismo de inspiração claramente wilderiana, dispensável, Almodóvar complica um bocado mais a vida do espectador, tornando a fazer uso de um de seus maiores fetiches, o padre lascivo, aqui interpretado por Daniel Giménez Cacho. Zahara, a drag queen que vive de pequenos golpes, com a ajuda de Paca, de Javier Cámara, uma presença sempre agregadora, mais parece um espectro a assaltar a história sem prévio aviso, deixando o que já estava devidamente amarrado meio à deriva, malgrado a performance do onipresente Gael García Bernal, tão vivaz quanto Antonio Banderas fora nos trabalhos mais distantes de Almodóvar, redima parcialmente esse engano do diretor, que para tanto também conta com Carmen Maura, um seu talismã.

Como em “Ninfomaníaca — Volume 1” (2013), em que Lars von Trier dá aura de heróis da civilização a pedófilos que conseguem viver com suas fantasias dentro de suas cabeças — e apenas dentro de suas cabeças —, Pedro Almodóvar parece disposto a erguer uma estátua em praça pública a clérigos que mantém suas genitálias debaixo das respectivas batinas e se abstêm de atacar acólitos indefesos. O problema é que, como “Má Educação” mostra, é tão estúpido resistir às tentações, como insinuou Oscar Wilde (1854-1900), que o sacrifício poderia se voltar contra ele, sob a forma de tragédia ou farsa. Ou, quem sabe, chanchada.


Filme: Má Educação
Direção: Pedro Almodóvar
Ano: 2004
Gênero: Drama/Suspense
Nota: 9/10