Obra-Prima na Netflix: Anthony Hopkins encarna personagem de best-seller de Kazuo Ishiguro Divulgação / Columbia Pictures

Obra-Prima na Netflix: Anthony Hopkins encarna personagem de best-seller de Kazuo Ishiguro

Ainda que num vaivém quase frenético, a vida de Stevens, o mordomo interpretado por Anthony Hopkins em “Vestígios do Dia”, é pouco mais que o prolongamento de uma agonia. Mais uma das boas parcerias entre Hopkins e James Ivory — também marcadas pela órbita de Emma Thompson, figura que aqui ganha um relevo progressivo e inconteste —, o filme, baseado em “Os Vestígios do Dia” (1989, Companhia das Letras), romance com que Kazuo Ishiguro venceu o Prêmio Man Booker de 1989, talvez seja um dos exemplos mais cabais de história cujo andamento não tenha propriamente uma cadência, mas uma emulação de cadência; isto é, Ivory, um dos homens de cinema de maior sensibilidade de todos os tempos, tem o condão de perceber essa necessidade do enredo de se desenrolar em torno de um protagonista masculino cuja alma se furta a revelar-se — e quando o faz, aparece sempre meio borrada —, em narrativas cíclicas, quiçá repetitivas; Stevens, contudo, vai tomando conta de todo o filme aos poucos, ajudado, claro, pelo soberbo talento de seu intérprete, mas também pela influência que Thompson vai ganhando, numa soma muito equilibrada de carisma, melancolia, técnica e arrojo.

O roteiro de Ruth Prawer Jhabvala (1927-2013) faz uma espécie de cálculo sobre a onipresença de Stevens no primeiro ato, e chega a um resultado satisfatório. O mordomo-chefe de Darlington Hall, a célebre casa de campo no interior da Inglaterra de um certo lord Darlington, o aristocrata meio decadente de James Fox, tão por baixo que fora obrigado a vender a propriedade a um congressista americano, uma vergonha que se vai juntando a muitas outras. No verão de 1956, Stevens já conta trinta anos de excelentes serviços prestados aos Darlington — recompensados com o invencível medo de ser posto na rua, a secura de espírito que azeda tudo ao seu redor e a solidão de que não pode mais se apartar. A mesmerizante fotografia de Tony Pierce-Roberts investe no contraponto do verde dos campos ingleses com o azul esmaecido do automóvel que o personagem de Hopkins conduz até o litoral, para onde se desloca a fim de se encontrar com a senhorita Kenton, a ex-governanta vivida por Thompson, não por cortesia ou uma inclinação sentimental, que decerto julgaria algo disparatada. Stevens vai ao encontro da moça a fim de convencê-la a voltar a dar expediente em Darlington Hall, uma pequena mostra de sua obsessão e de sua egolatria.

No livro de Ishiguro, a ideia-chave, que ronda a simpatia de lord Darlington pela Alemanha nazista ao longo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), tem sobrevida mais orgânica, sem os artificialismos de que o diretor precisa se socorrer, desnecessariamente, a fim de chamar a atenção para um assunto que julga importante. É óbvio e mesmo quase forçoso que em “Vestígios do Dia” o anticaso de Stevens e Kenton é o que ganharia relevo — ainda que passagens em que o mordomo atua como mestre de cerimônia nos lautos jantares oferecidos pelo patrão, redivivos em flashbacks caudalosos, Ivory mostre o desconforto de seu protagonista, mascarado por uma eficiência profissional a toda prova, quando presencia os tais vestígios, mais ou menos declarados, do apoio do personagem de Fox e seus convivas a Hitler, sua ideologia hedionda e seus métodos repulsivos. Nunca se pode dizer em que proporção Stevens os apoia ou discorda do que é dito ali, se é que ele pensa na gravidade daquele teatro nefando. Sua misantropia é a aplicação prática do apotegma de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.).

Emma Thompson entra com mais força na história depois de cumprida essa etapa um tanto protocolar da alusão à guerra e ao nazismo, abrindo o filme para possibilidades que, lamentavelmente, não se concretizam — não por sua culpa, nem de Hopkins e nem mesmo de Ivory. Todo o calor de “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017), o drama juvenil do italiano Luca Guadagnino, versão do livro de André Aciman com a qual Ivory ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, aos 89 anos, torna-se o frio glacial dos rapapés e salamaleques dos criados ingleses, caricatura que a senhorita Kenton de Thompson ousa quebrar numa atuação que a todo instante flerta com o melodramático, até com a chanchada, mas nunca sai do controle, mérito do domínio cênico de uma das melhores atrizes já vistas. Românticos inveterados lamentamos a decisão de Stevens, ainda que se saiba que ele não pode ser de outro jeito, que essa é sua natureza. Entretanto, dói muito mais uma senhorita Kenton esfregando seu amor platônico na cara do espectador, consolada apenas pela triste verdade exposta acima. Tudo tão claro quanto uma tarde de verão no norte da Itália.


Filme: Vestígios do Dia
Direção: James Ivory
Ano: 1993
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.