Nova comédia da Netflix tem a dose de leveza que sua semana precisa

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Pode ser difícil, muitas vezes quase impossível, mas sempre há um jeito qualquer de se reparar decisões erradas que, por terem resvalado nas vidas de outras pessoas, vão-se sedimentando e acabam como por se constituir numa maldição para além deste plano. Pelo título, tem-se uma boa noção do que Ricardo Castro Velázquez pretende com “Os (Quase) Ídolos da Bahía Colorada”, um enredo tipicamente mexicano — em tudo que isso pode ter de mais lisonjeiro — sobre concepções muito particulares de romances, fracasso, morte, tudo assumidamente kitsch, exagerado, colorido, o autêntico jeito de se viver abaixo do rio Grande. Em seu filme de estreia, Velázquez compõe, com a licença da metáfora óbvia, um mosaico da feérica diversidade cultural do México enquanto penetra cuidadosamente nos assuntos universais que também acinzentam sua aldeia, malgrado ninguém jamais acuse o golpe. O heroico roteiro de Alfonso Suárez, Beto Gómez e Maria Torres tem o condão de, em 96 minutos (divulgados como duas horas, sabe-se lá por quê), bosquejar a saga desditosa de dois garotos com um obscuro laço a uni-los, um logro do destino que tratam de se esforçar por vencer. Juntos.

Sobre um mapa, um par de mãos rugosas desliza por Sinaloa, estado no noroeste mexicano, onde está a tal Bahía Colorada, a baía vermelha, um lugar paradisíaco que se esparrama Pacífico adentro. Valentín Abitia Gallardo, o autoproclamado herói daquelas plagas, é, na verdade um tipo meio asqueroso cuja leviandade o carisma de Dagoberto Gama ajuda a mitigar. Os roteiristas elaboram essa sua branda vilania ressaltando-lhe a inegável vocação para a pândega e o supino talento musical, que não o desculpam, mas vertem em canção uma visão de mundo equivocada, reacionária até, acerca de como pode dispor da própria sexualidade e do que julga ser um coração grande demais. O resultado de tanta bazófia e tamanha indiferença com os sentimentos alheios, bem característicos de um verdadeiro amante latino, sem medo de nada, nem de gente linguaruda, nem da morte, resulta em dois lares chefiados pelo mesmo homem, o lado A e o lado B de sua intimidade, compostos por Raquel e Romeo e Silvia e Preciado, respectivamente, suas mulheres e os meio-irmãos que hão de se conhecer numa circunstância nada feliz. Benny Emmanuel e Harold Azuara se estranham no começo, naturalmente, reproduzindo a valentia estulta do pai fanfarrão — e continuam se hostilizando ao saber que nutrem o mesmo sonho, a única herança de Gallardo. Mas disputar o Brutal, o rali de Sinaloa que corta boa parte do deserto de Sonora é um propósito nobre demais para esses dois ingênuos sonhadores.

A partir do segundo ato, “Os (Quase) Ídolos da Bahía Colorada” mostra os personagens de Emmanuel e Azuara sempre na mesma cena, como se resignado a uma sina meio opaca, apesar de todo o brilho que os cerca. E a vida é assim em muitas situações, ensinando a Romeo e Preciado que fracassar também é glorioso.


Filme: Os (Quase) Ídolos da Bahía Colorada
Direção: Ricardo Castro Velázquez
Ano: 2023
Gêneros: Comédia/Musical
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.