O filme premiado e inteligente da Netflix que escapou do seu radar Julian Torres / Les Films Velvet

O filme premiado e inteligente da Netflix que escapou do seu radar

O encontro de duas realidades, antagônicas, mas que se unem e formam um só todo, fortalece duas jovens que acendem para a vida, cada uma a seu modo. Enquanto uma se bronzeia seminua, estirada diante do mar da costa oeste França, a outra assiste àquilo entre atônita e fascinada, sem conseguir não pensar sobre seu próprio futuro, mas também sem ter ideia muito nítida quanto ao que fazer de todo o tempo que ainda lhe resta. “A Prima Sofia” (2019), de Rebecca Zlotowski, fala a essa imagem do sensual e do estritamente filosófico; é físico, mas também cerebral — e um e outro desses predicados toma forma sob a figura de uma jovem e bela mulher.

De um lado a personagem-título, incorporada por Zahia Dehar, é o próprio cinismo que a vida encerra, sobretudo quando não se tem o peso dos anos sobre as costas. Sofia viaja de Paris, onde mora, até Cannes, na costa leste da França, a fim de passar o verão com a prima, Naïma, de Mina Farid, tambem excelente. Naïma mora perto do hotel em que a mãe, Dounia, de Loubna Abidar, dá expediente como camareira, e as duas dividem um apartamento digno, mas modesto, além da convivência pacífica. Com sua sede de viver, seu apetite sexual a toda prova, a lascívia que é parte indissociável de seu temperamento, as roupas decotadas e justas que lhe realçam o busto queimado de som e as belas curvas — além das joias e bolsas Chanel que ganha dos homens com quem constantemente passa a noite —, Sofia é a antítese da angelical Naïma.

Zlotowski é hábil em construir essa imagem de uma dialética apenas visual, deixando sugerido que as duas têm muito mais em comum do que conseguem perceber, e o principal, do que o público alcança. As sequências em aparecem nos convescotes oferecidos por Andrés e Philippe, personagens de Nuno Lopes e Benoît Magimel, o evidenciam, e em que pese a beleza das cenas no iate dos dois, emolduradas pelo mar Mediterrâneo brilhando ao sol, o que se destaca ainda que a fotografia bem cuidada de Georges Lechaptois, é a angústia, permanente e em igual medida, de Sofia e de Naïma, expressa de modos opostos, mas com a mesma pendência. Se a personagem de Farid é triste por não ter a vida aparentemente perfeita da prima — que vai percebendo ser uma farsa erigida meticulosamente, mas de fácil desconstrução, em especial depois de um acontecimento infeliz num dos encontros no iate —, Sofia, por seu turno, se sabe levando uma vida miserável, condenando-se a ser apenas uma mulher encantadora em sua mistura de Brigitte Bardot e, referência elementar, Sophia Loren.

O roteiro de Zlotowski, coescrito com Teddy Lussi-Modeste, aproveita bem a força da estética das duas protagonistas, mormente da argelina Dehar, no centro de um escândalo sexual com a seleção francesa quando ainda menor de idade. É precisamente o sexo e o poder que ele evoca o vigoroso fio condutor da história. O fascínio que Sofia exerce sobre todos os personagens, descartável, mas poderoso, trava uma guerra quase sangrenta com tudo o que Naïma representa, identidade que assume de vez no desfecho. Cada um tem autonomia para decidir que rumo tomar, e é essa a grande sacada de “A Prima Sofia”, sem moralismo nem tragédias.


Filme: A Prima Sofia
Direção: Rebecca Zlotowski
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Comédia/Coming-of-age
Nota: 8/10