A atmosfera sufocante do deserto do Neguev se reflete na vida dos beduínos que lá vivem, sobretudo para um grupo em particular. Quase prisioneiras de uma religião que, na prática, as oprime em muitos aspectos, as mulheres gradualmente internalizam o comportamento hostil de que são vítimas e o repassam a outras mulheres, começando pelas próprias filhas. Essa deturpação do conceito de fé religiosa é brilhantemente explorada pela diretora israelense Elite Zexer, que em “Tempestade de Areia” (2016) expõe as entranhas de uma família que se esfacela devido à obediência cega a uma doutrina radical, que só faz irradiar a tristeza de duas gerações. Nesse universo paralelo até mesmo para a cultura árabe, os homens são indivíduos especialmente dotados de privilégios, quase divinos, que não apenas desfrutam de suas mordomias pretensamente divinas, mas também fazem questão de deixar claro às mulheres ao seu redor que possuem controle sobre suas poucas vontades, sua liberdade tênue, sua dignidade constantemente pisoteada e até suas vidas. Este é o comportamento de Suliman, cuja perversidade cínica é perfeitamente destacada na interpretação de Hitham Omari. Suliman está prestes a se casar com Alakel, interpretada por Shaden Kanboura, sua segunda esposa — ele e a família são muçulmanos e o islamismo permite que o homem tenha até quatro mulheres — e cabe a Jalila, a primeira esposa, interpretada pela excelente Ruba Blal, cuidar dos preparativos da cerimônia. Mesmo humilhada, ela cumpre essa tarefa; para ela, a vida parece irreversivelmente perdida. Mesmo que, no fundo, deseje que Layla, a filha mais velha do casal, tenha um destino diferente, Jalila sabe que o melhor para todos, sobretudo para a aldeia em que vivem, é que Layla se case com quem o pai mandar, e é neste ponto que outra discussão começa a se desenrolar. Suliman é tão pouco criterioso na escolha de Munir, interpretado por Omar El Nasasreh, que Jalila, quase sempre submissa, se vê forçada a exigir do marido que “seja homem” e procure alguém melhor. Enquanto isso, o conflito central perde força e dá lugar ao que se torna a principal fonte de tensão no roteiro de Zexer.
Embora breve, a subtrama que discorre sobre o envolvimento romântico de Layla com Anwar, o colega de faculdade interpretado por Jalal Masrwa, é fundamental para que se entenda a direção da história e por que os acontecimentos se desenrolam dessa maneira. Lamis Ammar consegue transitar com facilidade de um lado a outro da narrativa, e apesar da perspectiva de “Tempestade de Areia” mudar, sua personagem continua sendo a protagonista, liderando o elenco e o filme. Há espaço para o lirismo em um texto tão árido, que parece considerar indispensável ressaltar a secura, tanto das palavras como do ambiente, estranhamente bonito na fotografia de Shai Peleg. O tema da areia, aparentemente gasto e sem interesse, sobretudo em um filme ambientado no deserto, cresce e logo se torna evidente que a poeira a que a diretora quer se referir não é a que reveste aquela porção esquecida do mundo no Oriente Médio. Além de lutar contra uma pobreza particularmente cruel, em grande parte resultado da infertilidade do solo, Layla e Jalila se veem ainda mais confrontadas por costumes que não escolheram, a única herança em uma terra cuja principal característica é o retrocesso atávico, em grande parte devido a homens como Suliman.
Elite Zexer parece ter pesquisado de perto a vida dos beduínos ao se decidir a rodar “Tempestade de Areia”. Embora muito bem disfarçada, a religião é decerto a força motriz de seu filme, e talvez sua grande (e involuntário) calcanhar de Aquiles. Zexer recebera críticas acerbas por ser uma judia israelense “atrevendo-se” a dar pitaco no estilo de vida alheio quando em sua própria casa já há tanta desarmonia. O argumento, essencialmente desonesto e fracassadamente capcioso, deixa de lado, de propósito, a evidência de que judeus vem sendo apedrejados há dois mil anos, e agora partilham esse seu status com os cristãos — em especial no Oriente Médio, que os defensores do justo, do bom e do belo adoram incensar, ainda que se ufanem de sua ignorância quanto à intrincada história que o envolve. Ainda que tivesse errado muito, o que não é o caso, “Tempestade de Areia” é um trabalho, no mínimo, corajoso, e só quando se depara com uma produção como essa é que se tem a certeza de que é necessário mais gente disposta a encampar uma batalha como a que encerra, não menos. Até que, quem sabe, o inesperado nos presenteie com alguma bonança.
Filme: Tempestade de Areia
Direção: Elite Zexer
Ano: 2016
Gênero: Drama
Nota: 9/10