O filme espanhol surpreendente da Netflix que vai te deixar sem fôlego    Divulgação / Netflix

O filme espanhol surpreendente da Netflix que vai te deixar sem fôlego   

Diferentemente do que fixou o senso comum nos corações e mentes de pessoas bem-intencionadas mundo afora ao longo dos anos, heróis são e serão necessários sempre, e é precisamente nos momentos de crise que eles se revelam. Dramas pessoais moldam o caráter dos homens, tanto deixando mais amena sua apreensão sobre a vida, ou, pelo contrário, fustigando-os com tal ímpeto que aprisionam-se na ideia de que merecem uma revanche — ainda que isso custe-lhes muito caro. “O Mediador” é uma trama complexa, para o bem e para o mal, em que o espanhol Esteban Crespo parece analisar cada lance com todo o esmero, feito se num xadrez ou um outro jogo de tabuleiro qualquer, com a ressalva de que as peças estão vivas, dependem de seus empregos para suprir necessidades básicas, sofrem decepções, magoam-se, e, claro, estão sob a ameaça constante da morte, uns mais que outros. Crespo recorre a um protagonista excessivamente absorto em seu próprio meio, em sua própria rotina, em seu próprio mundo, mas carismático e perspicaz o bastante para saber até onde deve permitir-se levar pelo ímpeto, o que confere-lhe uma dubiedade moral bem administrada pelo diretor e seu intérprete principal, os dois irmanados do começo ao fim no propósito de transmitir uma mensagem de esperança, mas uma esperança racional, do que alguém pode ou não fazer e de modo a não desperdiçar alguma possível conquista. E elas são muito poucas.

Um homem perambula pela casa de madrugada, como um gato. A pouco e pouco, o roteiro de Crespo e David Moreno vai quebrando a monotonia da vida pacata de Carlos, um advogado certinho que antes de sair para trabalhar, beija o ventre de Susan, a esposa grávida interpretada por Melina Matthews, e aproveita para descer um pouco, numa cena francamente incômoda. O sol ainda demora a romper o horizonte, mas a fotografia alguns tons abaixo do padrão de Ángel Amorós encarrega-se de fazer com que o público fique sempre na expectativa por uma guinada brusca, que vem, mas depois de muito tempo. Carlos, uma composição particularmente feliz de Raúl Arévalo, corre até um bar, desce a um cubículo penumbroso e ensebado, troca de roupa e guarda um maço de euros, aumentando progressivamente o grau de mistério em torno de sua figura. Na virada para o segundo ato, Crespo e Moreno mencionam um embargo ao petróleo de um país africano, e desse entrecho surge a interferência da ONU, fazendo a ponte entre uma facção terrorista e o resto do mundo. É o princípio da virada do filme, quando o protagonista é acossado sem trégua até que se vê forçado a deixar a Espanha e recorrer ao amigo León Ndong, o tipo bem relacionado vivido por Emilio Buale, que conhece o pretenso sequestrador que toma a narrativa por alguns minutos.

No longo segmento final, o diretor elabora dramas de família que juntam-se ao conflito inicial do personagem de Arévalo, que inicia a procura pelo filho de Calixto Batete, de Jimmy Castro, que faz revela a Carlos um segredo e desaparece. Ele chega a Calixto Jr., do adorável Dairon Tallon, com a ajuda de Ale, uma enfermeira também cheia de suas zonas cinzentas, que paga um preço alto demais por sua solidariedade. Embora muito breve, a participação de Candela Peña é fundamental quanto a levar “O Mediador”, cada vez mais parecido com “Trama Internacional” (2009), de Tom Tykwer, para o terreno do noir de espionagem. A inclusão de um último componente na pletora de caos e angústia que o filme se torna mais confunde que explica, e só se desculpa porque se trata de Paulina García, outra vez brilhante. Sua Elena, uma diplomata ambiciosa e funcionária de carreira das Nações Unidas, dá impressão de que tudo quanto de hediondo que toma corpo na história aconteceu para que um tal programa A África É Uma Só, desenvolvido por ela para assistir mais de quinhentos milhões de pessoas em 24 países, fizesse sentido. Em se sabendo que Elena e Carlos são mãe e filho, essa hipótese já não parece um absurdo tão grande.


Filme: O Mediador
Direção: Esteban Crespo
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.