Cada um se encanta pelo que lhe faz falta, e sentimentos como amor, fúria, desejo, ganância sobem e descem na escala da vida de acordo com o lugar em que nos achamos. “O Escorpião Rei”, crônica algo desvairada da realidade e dos costumes de um povo à espera de seu salvador, trabalha nessa frequência, alguns níveis acima do que a imaginação supõe razoável, mas puxando a rédea do absurdo quando preciso. O protagonista do filme de Chuck Russell luta contra impulsos poderosos, tentando dominar suas fraquezas, ao passo que fica cada vez mais vulnerável a movimentos confusos e sorrateiros do destino, que não entende, e lida com suas inadequações mais flagrantes, as que arruínam seu espírito silenciosamente. O roteiro de David Hayter, Jonathan Hales, Stephen Sommers e William Osborne reserva a Dwyane “The Rock” Johnson o encargo de vencer sozinho uma legião de inimigos, sujeito a uma vasta gama de intempéries que o ameaçam com uma violência que ninguém é capaz de suportar, escapando ileso às trapaças do existir, permitindo-se enredar gostosamente nas teias do imponderável, depois de ter investido em vão toda a sua pantagruélica energia na salvação de sua gente. Este é o momento em que se lança às profundezas do abismo do que não conhece, sem saber se é capaz de voltar, por um motivo de inestimável nobreza.
Ainda que tudo em “O Escorpião Rei” lembre o Egito Antigo — a começar pelo próprio enredo, adaptação de “O Retorno da Múmia” (2001), dirigido por Sommers —, a história toma corpo milhares de anos antes das Pirâmides, outra das inconsistências retóricas do quarteto de roteiristas. Não há nada de flagrantemente original no filme, e nota-se logo no que vai dar o convescote de bárbaros que vangloriam-se de chacinar mesopotâmicos, assírios, micênicos e sumérios, ansiosos para passar pelo fio da espada um arcadiano, leia-se Mathayus, o rebelde que tenta libertar a civilização de que ainda é membro, embora quase todos o encarem como um pária. Evidentemente, não cairia bem à carismática figura de The Rock ser tachado de vilão de modo tão desabrido, e por essa razão, ele surge em lugares em que é muito bem-vindo, como o harém guardado pela feiticeira Cassandra Hooey, de Kelly Hu — que só mesmo por um poderoso sortilégio teria conseguido deslocar-se do leste asiático para o Oriente Médio em tempos imemoriais em que o lombo de camelo era o ápice da sofisticação em transportes. Quando é descoberto por capangas de Memnon, o Escorpião Rei do título interpretado por Steven Brand, despede-se como pode, literalmente escoando pelo ralo com a linda bruxa e suas vergonhas a salvo da concupiscência da plateia graças aos cabelos muito longos, numa das melhores cenas em hora e meia de projeção.
“O Escorpião Rei” não se leva a sério, e este é seu grande trunfo. A história absurda, os efeitos especiais risíveis, as atuações a um triz do grotesco, em tudo Russell eleva seu trabalho aos píncaros do kitsch e da comicidade involuntária, disso resultando um clássico do cinema B. Com direito, claro, ao final feliz de Mathayus e Cassandra, que mantém seus dons visionários mesmo depois de… você sabe.
Filme: O Escorpião Rei
Direção: Chuck Russell
Ano: 2002
Gêneros: Ação/Aventura
Nota: 8/10