Se toda história dispõe de começo, meio e fim, é lógico pensar que o mesmo se dê com a Terra — e com o próprio universo —, e, quiçá, tudo se reinicie de outro modo. As pesquisas de Albert Einstein (1879-1955) acerca do tempo e as diferentes posturas dos corpos diante do deslocamento da luz e da ação gravitacional, a base científica para a formulação da célebre Teoria Geral da Relatividade, em 1905, podem explicar o frenesi da humanidade em subjugar a passagem dos anos a seu talante. Tomando-se os postulados de Einstein em sua constituição pura, seria possível, até sem muita dificuldade, reordenar a passagem dos dias, dos meses, dos anos e séculos, indefinidamente, de acordo com as necessidades do homem, o que Stephen Hawking (1942-2018) ratificou com seus estudos sobre o espaço-tempo e a radiação dos buracos negros, onde a luz se desintegra e metamorfoseia-se em novas fontes de energia e uma força ineditamente poderosa, capaz de, como previra o alemão sete décadas antes, empurrar tudo quanto existe para o limbo onde a vida recomeçaria. À Teoria de Tudo do britânico, assunto do lindo filme homônimo dirigido por James Marsh em 2014, e às descobertas de Einstein, acrescentam-se elucubrações entre vesanas e francamente absurdas no que respeita ao suposto condão humano em pular de uma era a outra sem critério algum, cada vez mais ajudado pelas intenções nada cândidas dos dispositivos de inteligência artificial.
Nunca serão demais críticas a um mecanismo que, mais cedo ou mais tarde (e, pelo visto, será muito mais cedo do que se pensa), reduzirá seres humanos a meros coadjuvantes de sua história, inventado e gostosamente desenvolvido por outros seres humanos — quanto a isso nenhuma surpresa: homo sapiens sapiens tornamo-nos peritos em devorar-nos uns aos outros desde que o mundo é mundo, e continuamos abrindo caixas de Pandora para muito além do tropo da mitologia grega antiga —, descompasso ético-cognitivo que há de abreviar nossa marcha rumo à Terceira Guerra Mundial, com ogivas nucleares saltando de Pyongyang para Teerã, de Teerã para Ancara, de Ancara para Washington, de Washington para Marte, até, finalmente, voltarmos todos à condição de poeira cósmica de onde surgimos, num buraco negro a centenas de milhões de anos-luz daqui. O cinema, essa máquina do tempo sempre configurada para fazer-nos retroceder a nosso passado de rara glória e seguir para um amanhã em que a esperança será um artigo de primeira necessidade, também se constitui de exemplos que justificam o assombro de muitos diante do que nos reserva o progresso sem ordem e, claro, sem amor. Com “Ela”, Spike Jonze superou todas as expectativas quanto a revelar do jeito mais cartesianamente notório não como será, mas como É o futuro que já tornou-se passado, com onipresentes aparelhos domésticos respondendo em vozes amenas a nossos comandos e softwares tanto mais refinados, hábeis a emular um diálogo aparentemente normal, que uns espertos já souberam verter numa alternativa de fugir ao trabalho de pensar e, de quebra, ganhar algum dinheiro. Os outros quatro filmes da nossa lista, todos na Netflix, do mais novo para o de lançamento mais atual, ainda que flertem muito mais com a licença poética, a exemplo de “Jurassic Park — Parque dos Dinossauros”, dirigido por Steven Spielberg, também se referem ao vício do homem de nunca conseguir adequar-se ao meio em que é forçado a viver, querendo sempre experiências novas — sem atentar para a verdade ululante de que essa sua curiosidade o leva a dar vida não a uma, mas a dezenas de monstros, furiosos, candidatos a novos donos do mundo ansiando por desbancar o homo sapiens sapiens e usurpar-lhe o trono, ajudados pelo próprio homem.
O fim está próximo e ele vem do alto. Por trás de grandes sucessos do cinema, todos dotados de algum grau de cinismo e descrédito na humanidade, em “Não Olhe para Cima” Adam McKay apresenta a sua versão para o maior medo da humanidade — e grande alívio para alguns —: a iminência da morte. Lançado em 2021, depois de quase dois anos de isolamento compulsório devido a uma pandemia que botou muita gente louca — e matou outro tanto —, McKay joga no caldeirão de seu filme suas impressões mais cômicas e dramáticas sobre as redes sociais como um foco perene de hostilidade e subversão de valores, o desenvolvimento tecnológico irrefreável, as reviravoltas do clima, a futilidade de pessoas que se pensam célebres, ou seja, a vida no século 21, mantendo cada assunto em sua gaveta correspondente e embaralhando-os quando lhe convém. Deliberadamente aloprado, em momento algum “Não Olhe para Cima” abre mão de manter o espectador na rédea curta, mostrando-lhe, até de modo didático, com o que importa se preocupar ou não.
Lançado em 2017, “Blade Runner 2049” é, além de desesperadoramente atual, fiel à matriz de que saíra. O estranhamento quanto ao filme de Denis Villeneuve, que ganhou as telas três décadas e meia depois de “Blade Runner” (1982), o inaudito blockbuster de Ridley Scott, é que um produto cultural só há de fazer sentido se inserido no contexto sociopolítico de seu tempo, e a partir de então, é tomado por aquilo que passa a ser, adquire vida nova, como se o antecessor nem tivesse tanta relevância assim — o que, definitivamente, não é o caso — ou quisesse matar o pai — idem. Um dos cineastas mais sofisticados do cinema hoje, o franco-canadense nunca se furtou a exaltar a genialidade do britânico, e Scott, por seu turno, sempre reconheceu que seu trabalho, primoroso, poderia não estar a salvo de retoques — como todo produto cultural, aliás. Juntou-se à fome a vontade de comer, ou por outra, o desejo de retaliação à necessidade de matar.
Alex Garland é dos poucos cineastas a serem capazes de subverter a pletora de lugares-comuns que sufocam tais enredos, embora seja precipitado se considerar esta uma moda superada. Saborosamente confuso, seu desnorteante “Aniquilação” é, decerto, das produções mais originais no ramo — ainda que transposto do livro do americano Jeff Vandermeer, publicado no Brasil em 2014 pela Intrínseca (se se optar por excluir filmes adaptados de trabalhos literários, aí mesmo é que não resta pedra sobre pedra). Encontra-se no leito de “Aniquilação” os mesmos elementos que transformaram o drama “Stalker” (1979), de Andrei Tarkovski, ou o tragicômico “Dr. Fantástico” (1964), também de Kubrick, em clássicos não só do subgênero nem do cinema, mas da manifestação artística do homem através das épocas, e por incrível que possa parecer, “Aniquilação” foi fracasso de audiência, por causa da divulgação tíbia, quase clandestina, rescaldo do vexame após o ousadamente sofisticado “Mãe!” (2017), levado à tela por Darren Aronofsky. Recomendo-os todos como um pai.
Filmes são, em geral, indicadores de precisão quase imbatível quanto a apontar as mudanças pelas quais as sociedades ao redor do mundo anseiam, bem como também têm o condão de, antes que nos deixemos fazer presas da admiração impensada por possíveis serviços e ideias, elencar uma infinidade de razões bastante pertinentes — e elementares — quanto à impropriedade e mesmo aos perigos de tais revoluções. Spike Jonze erige argumentos sofisticados, da maneira mais orgânica que alguém pudesse conseguir, e faz de “Ela” um verdadeiro tratado schopenhaueriano acerca da esquizofrênica natureza do homem, sempre a um passo do precipício da loucura, perdido que está desde o princípio dos tempos, em meio à maldição de suas próprias vontades. O trabalho de Jonze toca como poucos o pensamento filosófico, prezando por nunca ser apenas trágico ou esperançoso, mas corajosamente original ao encontrar uma saída para amalgamar as duas vertentes de um mesmo assunto, em todos os complexos personagens que integram o enredo. A começar, claro, pelo protagonista.
Há aspectos grandiosos na maneira como Steven Spielberg realiza seu trabalho. Seu faro para o sucesso, derivação da sensibilidade a toda prova que o torna capaz de canibalizar o espírito do tempo e saber de pronto do que o público se ressente, do que gosta, com o que quer se deparar num filme, aliado à facilidade de transformar histórias flagrantemente inusitadas, até absurdas, em fenômenos da indústria cultural — e, claro, minas de ouro inesgotáveis — consolidaram Spielberg como um diretor tão irrequieto quanto rentável, e seu grande mérito foi ter a sagacidade de, além de não se permitir encantar cegamente nem pela estética nem pela bilheteria, valer-se daquela para chegar a esta. “Jurassic Park — Parque dos Dinossauros” é o segundo dos grandes campeões de audiência de Spielberg, trajetória iniciada em 1975 com o avassalador “Tubarão”; dezoito anos depois, o diretor torna a dar vida não a uma, mas a dezenas de criaturas monstruosas, ainda mais furiosas e muito mais incontroláveis, velhos donos do mundo ansiando por desbancar o homo sapiens e voltar ao trono, ajudados pelo próprio homem.